A Organização Mundial da Saúde lançou recentemente um marco global: a Estratégia de Medicina Tradicional para o período de 2025 a 2034. O documento, aprovado por 170 países na 78ª Assembleia Mundial da Saúde, em maio, é mais que uma diretriz técnica que norteará as políticas públicas na próxima década. Representa o reconhecimento oficial, por parte da comunidade internacional, de que os sistemas médicos tradicionais, muitos deles ancestrais, devem fazer parte da resposta contemporânea aos desafios de saúde, desde que embasados em evidências científicas e inseridos de forma segura nos sistemas nacionais.
A OMS indica com clareza os caminhos a seguir: é preciso ampliar as pesquisas de qualidade sobre as Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas (MTCI), fortalecer a regulação, garantir a segurança dos pacientes e promover sua integração nos sistemas formais de saúde.
Trata-se de um movimento inédito em escala mundial, que legitima práticas como acupuntura, fitoterapia, medicina ayurvédica, medicina chinesa tradicional e medicina antroposófica, entre outras, como campos válidos de cuidado – desde que devidamente estudados e contextualizados.
Vale ressaltar que, desde a Conferência de Alma-Ata, em 1978, a medicina tradicional, incluindo saberes indígenas, passou a ser reconhecida como parte essencial da atenção primária à saúde, especialmente quando constitui o principal ou único recurso terapêutico disponível em 80% dos países. Essa valorização também se intensifica com a nova estratégia da organização.
Congresso sobre o tema no Rio de Janeiro em outubro de 2025
Como o cuidado integral à saúde exige validação científica, protocolos seguros e instrumentos de avaliação de efetividade clínica, a OMS tem atuado intensamente nesse sentido, com destaque para a criação do Global Traditional Medicine Centre(GTMC/OMS), lançado durante a primeira Cúpula Global sobre MTCI, em 2023, na Índia, em paralelo à reunião ministerial da saúde do G20.
Para outubro de 2025, outro passo estratégico está planejado: a OMS participa do 3º Congresso Mundial de Medicina Tradicional, Complementar e Integrativa (3rd WCTCIM), no Rio de Janeiro. O evento, que acontece pela primeira vez na América Latina após Berlim (2017) e Roma (2023), será palco do pré-lançamento da Global Traditional Medicine Library, iniciativa do GTMC, que reunirá evidências científicas na área com acesso aberto.
Esta biblioteca global da OMS já reúne até o momento mais de 1,5 milhão de publicações indexadas no PubMed. Também em parceria com a OMS, será construída no 3rd WCTCIM a Aliança Global de Consórcios e instituições de pesquisa em MTCI das seis regiões do mundo.
A realização do congresso no país é a consequência do protagonismo que o Brasil vem ganhando nesse campo. A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, em vigor desde 2006, reconhece até agora 29 práticas.
Em 2024, mais de nove milhões de atendimentos nessa área foram registrados no Sistema Único de Saúde, um crescimento de 70% em apenas dois anos, segundo o Ministério da Saúde. São números expressivos, que indicam tanto a demanda da população quanto o avanço na institucionalização dessas abordagens.
Importa destacar a atuação conjunta do Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN) e do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME/OPAS), responsável pela gestão da Biblioteca Virtual em Saúde sobre Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas (BVS MTCI).
Essas instituições têm se dedicado à elaboração de mapas de evidências científicas. Até o momento, 26 deles já foram disponibilizados nos canais das instituições, com acesso livre, divididos em sistemas médicos, produtos naturais, terapias não farmacológicas e desfechos clínicos.
Tais mapas vêm se consolidando como instrumentos estratégicos no debate sobre políticas públicas em MTCI, ao sintetizar mais de 2,4 mil revisões sistemáticas (resultados de várias pesquisas já publicadas sobre um tema e uma das formas mais confiáveis de produzir evidências).
Essas ferramentas também organizam informações científicas de forma clara e acessível, relacionando o efeito de intervenções específicas com problemas específicos de saúde; permitem identificar lacunas no conhecimento e áreas com maior densidade de estudos, contribuindo para a formulação de políticas mais fundamentadas, em estudos de segurança e eficácia e alinhadas às necessidades reais de saúde da população.
Não se pode ignorar, entretanto, os obstáculos significativos que permanecem nesse campo, no país. Há dificuldades estruturais na formação de profissionais, na integração das práticas aos serviços de saúde, e a já conhecida escassez de financiamento.
São fatores que comprometem o avanço das MTCIs para a população brasileira, que seria largamente beneficiada com a ampliação do acesso a um cuidado integral, com terapias centradas na pessoa (e não na doença) e culturalmente apropriadas. São práticas que promovem o autocuidado, o protagonismo dos usuários, a prevenção em saúde, contribuem para evitar o agravamento de doenças e a cronificação de quadros clínicos, favorecendo a redução de custos no sistema público.
Que práticas são essas? Acupuntura e auriculoterapia para dor crônica; valeriana, passiflora e óleo de lavanda para insônia e ansiedade; yoga e tai chi chuan para hipertensão arterial; meditação mindfulness para depressão…
Há muitos exemplos de implementação dessas terapias no SUS, e com alta demanda pela população. O Brasil terá uma oportunidade, em outubro, que não se repetirá tão cedo: de mostrar sua diversidade de saberes e experiências em MTCI. Também poderá trazer a contribuição de regiões do mundo, em geral, sub-representadas nos congressos mundiais, como África, Oriente Médio, Sudoeste Asiático e América Latina. É uma forma de fortalecer a presença do Sul Global nos debates científicos internacionais, quase sempre concentrados pela Europa e pelos Estados Unidos.
Um congresso mundial em MTCI no território brasileiro é uma chance de internalizar os compromissos globais, aprimorar nossa política nacional, e expandir a colaboração científica sobre as práticas através da articulação de grupos de pesquisa e da publicação dos resultados. Podemos, ainda, aprofundar ações em direção à criação de modelos de pesquisa culturalmente sensíveis, especialmente relevantes no estudo de práticas indígenas e de matriz africana.
Para consolidar a ponte entre os saberes ancestrais, a ciência e a saúde pública, precisamos tanto das evidências como da escuta ativa para as comunidades e para os profissionais que já praticam, diariamente, formas de cuidar comprometidas com o bem viver. Que sejamos atores mais ativos para que a mudança, de fato, aconteça. Superemos a era da dicotomia da medicina alternativa e da medicina científica, em direção a uma medicina do futuro mais diversa e resolutiva, integrando saberes em prol do indivíduo, comunidade e da saúde planetária.