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Novo estudo define critérios para diagnóstico por imagem do lipedema, que aflige 12% das brasileiras

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Novo estudo define critérios para diagnóstico por imagem do lipedema, que aflige 12% das brasileiras

Milhares de mulheres convivem com dores nas pernas, inchaço persistente e manchas roxas sob a pele sem ter um diagnóstico preciso sobre a causa desses sintomas e, consequentemente, sem receber os cuidados adequados para aliviar o mal-estar. Boa parte delas enfrenta uma condição crônica chamada lipedema, marcada pela deposição desproporcional de gordura, especialmente nos braços e pernas – poupando mãos e pés. A alteração pode trazer consigo, também, sensação persistente de peso, sensibilidade aumentada, alterações na pele, rigidez.

A boa notícia é que um estudo no campo da radiologia, publicado em abril deste ano em revista científica e feito no Brasil, identificou padrões teciduais específicos associados a essa alteração. Isso permitiu, enfim, definir os critérios necessários para orientar o diagnóstico por meio de exames de imagem. Estima-se que cerca de 12,3% das mulheres brasileiras tenham lipedema, mas a maioria não sabe.

Até pouco tempo, portanto, não havia marcadores definidos que suportassem a identificação, nas imagens obtidas em exames de imagem (como medidas de ultrassom, ressonância magnética e densitometria), de um conjunto de particularidades capazes de caracterizar o lipedema. Assim, o diagnóstico era dado pelo médico a partir dos sintomas e sinais clínicos.

O conhecimento disponível sobre o tema autorizava o aproveitamento das informações obtidas com os exames de imagem somente para afastar outras causas para os sintomas, como a trombose.

Essa lacuna contribuiu para que o problema fosse sub-diagnosticado e frequentemente confundido com outras condições que promovem alterações do tecido adiposo, como a obesidade, a retenção de líquidos e o linfedema.

Em busca de explicação para o conjunto de sintomas

O estudo que definiu, recentemente, critérios para a identificação do problema por imagem foi publicado em abril no Journal of Biomedical Science and Engineering, sob o título The Challenge of a Qualitative Ultrasonographic Classification in Lipedema. O artigo é resultado de observações feitas na rotina de atendimento a 34 pacientes encaminhadas para exames radiológicos (neste caso, a ultrassonografia).

Como médica radiologista, atendi centenas de mulheres com dores, hematomas espontâneos e aumento desproporcional de volume nos membros inferiores. Isso me mostrou a necessidade e o desafio de encontrar uma forma eficaz de identificar o problema por imagem.

Diante do padrão recorrente e da falta de uma explicação para o conjunto de sinais e sintomas pelos métodos tradicionais de imagem, passei a buscar um meio de descrever, de forma objetiva, o que diferenciava a morfologia deste grupo de outras condições excludentes.

Com o propósito de compreender, padronizar e validar as alterações ultrassonográficas associadas ao lipedema e disseminar essas informações entre a comunidade médica, foi criado um núcleo de pesquisa, ensino e prática diagnóstica com foco no lipedema. Chamamos esse grupo de LIPCOR.

Todo o nosso percurso científico para a descrição dos critérios para identificar o lipedema por meio de exames de imagens está relatado no livro “De improvável a Memorável” (editora Amazon), lançado no final de novembro.

Evolução em quatro estágios

Foram necessários aproximadamente dois anos de pesquisa para documentar as alterações associadas ao lipedema nas camadas da pele e detalhar as alterações que o caracterizavam. Para além dos sinais visíveis, como inchaço e expansão tecidual, uma das contribuições mais relevantes do estudo foi a descrição e o entendimento fisiopatológico dos chamados “nódulos do lipedema, algo jamais feito anteriormente.

Por meio de biópsias guiadas pela ultrassonografia, revelamos que essas estruturas correspondem a áreas de micro-hemorragia e de falta de oxigenação tecidual (hipóxia). As alterações observadas mostraram que a doença não envolve apenas inflamação, mas também um processo de baixa oxigenação e redução do fluxo sanguíneo nas células atingidas, o que afeta a microcirculação e leva a mudanças contínuas na estrutura do tecido adiposo.

Tais achados decorreram do desenvolvimento da Classificação LDHC (Lipedema Dermal & Hypodermal Classification), que considera quatro estágios para o lipedema a partir do grau de alteração tecidual nas imagens do ultrassom. Pela primeira vez, foi possível estabelecer um modelo de evolução da doença baseado em evidências e capaz de orientar decisões clínicas, padronizar laudos e assegurar o acompanhamento sistemático das pacientes ao longo do tempo.

Com base nessas descobertas, foi criada uma metodologia padronizada de exame de ultrassonografia que define critérios de varredura e formas de documentação das diferentes camadas teciduais. Essa padronização torna possível que profissionais de vários serviços adotem a mesma lógica diagnóstica, o que facilita a comparação entre casuísticas, reduz a variabilidade interpretativa e amplia o uso do ultrassom na prática clínica. A calculadora LDHC, a primeira ferramenta de escore ultrassonográfico para lipedema, é um desdobramento desse esforço. Ela integra os achados do exame, sistematiza a classificação e orienta a elaboração de laudos estruturados.

Controle multidisciplinar

O lipedema foi reconhecido e classificado como doença em si pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019 e incluído na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) em 2022, cuja implementação oficial está prevista para 2027. O CID é utilizado globalmente para registrar diagnósticos de maneira padronizada, orientar sistemas de vigilância epidemiológica e estruturar políticas de saúde.

A designação do lipedema como uma condição em si, sob o código EF02.2, fortalece o valor médico-legal dos laudos, apoia solicitações de tratamento e contribui para sua incorporação mais sistemática na atenção à saúde. No Brasil, foi publicado neste ano o Consenso Brasileiro de Lipedema pela Metodologia Delphi, marco importante para o diagnóstico e tratamento da doença.

Os impactos emocionais e funcionais do lipedema são muito relevantes na vida das mulheres. A dor persistente, a limitação da mobilidade, a sobrecarga musculoesquelética e o comprometimento da qualidade de vida são comuns e pedem muito mais atenção. Em estágios mais avançados, a doença pode contribuir para o ganho de peso secundário, agravando a sobrecarga mecânica e cardiovascular — um fenômeno que reforça a importância de diagnósticos precoces e de estratégias de tratamento mais eficazes.

O manejo clínico do lipedema precisa ser multidisciplinar, envolvendo diversas abordagens para que possa ser efetivo. Deve combinar a fisioterapia orientada para mobilidade e drenagem, atividade física de baixo impacto, compressão, acompanhamento nutricional e suporte psicológico.

Intervenções cirúrgicas, como a lipoaspiração, fazem parte do arsenal terapêutico, mas não são indicadas a todas as pacientes. Ao contrário, devem ser consideradas em casos selecionados, especialmente quando o acúmulo de tecido compromete de forma significativa a mobilidade e a funcionalidade.

Agora dispondo de uma classificação tecidual inédita, uma metodologia de imagem padronizada e uma ferramenta digital de escore, a ciência brasileira se coloca na vanguarda internacional sobre o lipedema. Esses avanços abrem caminho para a criação de centros de referência, para estudos multicêntricos e para a ampliação de políticas públicas apoiadas em evidências.

Mais do que um avanço tecnológico, essa linha de pesquisa marca um ponto de inflexão na saúde da mulher. As descobertas possibilitam, que uma condição historicamente invisibilizada seja identificada por meio de parâmetros mensuráveis, documentação padronizada e reconhecimento oficial. Para milhões de mulheres, isso significará diagnósticos mais precisos, tratamentos mais adequados e cuidados alinhados ao conhecimento científico atual.

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