O Brasil enfrenta, há décadas, um paradoxo sangrento na segurança pública: prendemos muito, prendemos mal e, enquanto as taxas de encarceramento explodem, as organizações criminosas se fortalecem, expandem seus domínios territoriais e sofisticam suas operações financeiras.
É neste cenário de urgência que o Congresso Nacional debate o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 5.582/2025, de relatoria do deputado Guilherme Derrite, que propõe instituir um “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado no Brasil”. Aprovado na Câmara na noite da última terça-feira, 18 de novembro, ele agora vai para o Senado.
Como pesquisador que transitou da atuação policial na ponta para a análise acadêmica das políticas de segurança, vejo no texto uma dualidade perigosa. Se por um lado o projeto apresenta ferramentas modernas e necessárias para atingir o patrimônio das facções, por outro ele dobra a aposta em um modelo de encarceramento que já se provou falido e introduz dispositivos que podem criminalizar a sociedade civil, sob o pretexto de combater o crime.
A ilusão do encarceramento como solução
O projeto fundamenta-se na premissa de que penas altíssimas, variando de 20 a 40 anos para o novo crime de “Domínio Social Estruturado”, podendo chegar a 66 anos para líderes, desarticularão as facções. Contudo, uma avaliação honesta da realidade prisional brasileira derruba essa tese.
Temos lideranças de organizações criminosas, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), presas há décadas. Alguns destes líderes jamais viram a luz do dia em liberdade nos últimos 20 ou 30 anos, muitos submetidos ao [Regime Disciplinar Diferenciado](https://trilhante.com.br/curso/lei-de-execucao-penal/aula/regime-disciplinar-diferenciado-rdd-1#:~:text=O%20Regime%20Disciplinar%20Diferenciado%20(RDD,comuns%20ou%20em%20pres%C3%ADdios%20federais.) (RDD) e isolados em penitenciárias federais de segurança máxima. E o resultado? As organizações não apenas sobreviveram como cresceram, nacionalizaram-se e internacionalizaram suas rotas.
O simples encarceramento físico, mesmo em regimes severos, não impede o fluxo de ordens, a gestão de caixas milionários ou a sucessão de poder. Pelo contrário, o sistema prisional tornou-se o escritório central dessas corporações ilícitas, onde o recrutamento é facilitado pela ausência do Estado. Aumentar a pena de 30 para 40 ou 50 anos não altera o cálculo racional de um líder que já opera de dentro da cela. Insistir na severidade da pena como única dissuasão é ignorar a evidência empírica de que a prisão, no Brasil, atua mais como fator de coesão e fortalecimento das facções do que como instrumento de neutralização.
A criminalização do protesto
Um dos pontos mais alarmantes do projeto, que tem passado despercebido no debate público, é a redação do parágrafo 3º do Artigo 2º. O dispositivo prevê que, mesmo que o agente não integre organização criminosa, se ele praticar condutas como “impedir ou dificultar a atuação das forças de segurança” ou colocar “barricadas e obstáculos”, estará sujeito a uma pena de 12 a 30 anos de reclusão.
A gravidade deste dispositivo para a democracia é imensurável. Sob a justificativa de combater as facções, abre-se a possibilidade legal de enquadrar manifestantes, movimentos sociais ou moradores de comunidades periféricas como criminosos de altíssima periculosidade.
Imaginemos um cenário factível: moradores de uma comunidade protestam contra uma operação policial que resultou na morte de uma criança, queimando pneus e bloqueando a entrada da rua para evitar o retorno dos blindados. Pela redação proposta, essa conduta de “obstruir a ação policial” mediante “obstáculos físicos ou incêndios”, mesmo sem qualquer vínculo com o tráfico, sujeitaria esses cidadãos a uma pena mínima de 12 anos, a mesma pena mínima de um homicídio qualificado.
Trata-se de uma clara tentativa de silenciamento através da via penal. Ao equiparar o protesto contra abusos do Estado a atos vinculados a facções, o projeto criminaliza a pobreza e a dissidência política, criando um instrumento de repressão que poderá ser utilizado muito além do combate ao crime organizado.
A subjetividade da prova e a seletividade do “andar de cima”
Outro aspecto crítico reside na dificuldade probatória de definir quem “integra” uma organização criminosa. O projeto cria um banco nacional de dados onde a inclusão de um nome gerará a presunção de vínculo com a facção. Os critérios para essa inclusão, contudo, baseiam-se em antecedentes policiais, “convívio prisional” e relatórios de inteligência.
Aqui reside a armadilha da seletividade penal. É relativamente fácil para o sistema de Justiça rotular o jovem da periferia, que vive em áreas dominadas e tem passagens por pequenos delitos, como “integrante” da facção, sujeitando-o às penas de 40 anos. A “etiqueta” do crime organizado adere facilmente à pele preta e pobre.
No entanto, como o sistema tratará o “andar de cima”? O advogado que lava o dinheiro, o doleiro, o político que tem sua campanha financiada por facções, o empresário que investe na logística da droga? Esses atores, fundamentais para a existência da organização criminosa, raramente possuem “convívio prisional” ou aparecem em abordagens policiais ostensivas.
A subjetividade na definição de “integrante” cria um abismo jurídico: o varejista da droga será punido com o rigor máximo da nova lei, enquanto os financiadores e beneficiários econômicos do esquema continuarão sendo tratados como criminosos de colarinho branco, escapando das garras do “Marco Legal” e de suas penas de meio século. A lei, promessa de rigor universal, tende a ser, mais uma vez, uma máquina de moer a base da pirâmide social.
O acerto técnico: a asfixia patrimonial
É preciso reconhecer os avanços na esfera patrimonial. A criação da Ação Civil de Perdimento de Bens é, talvez, a maior contribuição do texto. Ao permitir o confisco de bens de origem ilícita através de uma ação cível, independente da condenação criminal e imprescritível, o Brasil busca alinhar-se às legislações mais eficientes do mundo.
O modelo proposto aproxima o Brasil da Extinción de Dominio colombiana, uma ação constitucional autônoma que foca na ilicitude da origem do bem, permitindo que o Estado tome a propriedade mesmo sem condenação penal do proprietário. Igualmente, dialoga com o Código Antimáfia italiano, que prevê medidas de prevenção patrimonial baseadas na periculosidade social e na desproporção de bens, permitindo o confisco preventivo antes mesmo da sentença criminal.
A proposta brasileira, ao romper o cordão umbilical com a morosidade do processo penal para fins patrimoniais, ataca o oxigênio financeiro das facções com a celeridade que o sistema tradicional jamais conseguiu entregar, porém agora com a previsão de que caso haja absolvição e comprovada a origem lícita dos bens, deverão ser devolvidos.
Conclusão
O Substitutivo ao PL 5.582/2025 é um documento de extremos. Ele oferece o remédio correto na descapitalização financeira, mas administra uma dose letal de populismo penal na tipificação de condutas e na dosimetria das penas.
A insistência na prisão como panaceia, a despeito de décadas de fracasso, e a criação de tipos penais abertos que ameaçam o direito de protesto revelam uma faceta autoritária que não pode ser ignorada. Se aprovado como está, o projeto servirá para superlotar ainda mais os presídios com a “soldadesca” substituível do crime e com manifestantes indesejados, enquanto as lideranças continuarão a comandar seus impérios de dentro das celas, e a elite criminosa financeira permanecerá intocada.
O combate ao crime organizado exige inteligência para seguir o dinheiro e os produtos, não uma legislação que ameace a democracia para punir a pobreza.
