Em 26 de março, os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) aceitaram por unanimidade a denúncia feita pela Procuradoria Geral da República e tornou réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete de sua cúpula governamental, entre eles, militares de alta patente, ex-ministros e representantes das áreas de inteligência e segurança do governo. É a primeira vez que militares de alta patente são julgados pela Justiça comum no Brasil, mesmo após terem praticado diversos crimes durante a ditadura militar. E é também a primeira vez um ex-presidente é colocado no banco dos réus por crimes contra a ordem democrática.
O julgamento, que segue agora para a fase de instrução, não representa apenas uma resposta ao passado recente, mas um teste institucional de longo prazo: sobre como o Brasil lida com tentativas de rupturas democráticas e sobre o futuro das relações entre civis e militares no país. O que está em jogo é a capacidade da democracia brasileira de reagir a ameaças, de responsabilizar quem atenta contra suas instituições, e de romper com um ciclo histórico de impunidade, especialmente dos militares.
Nesse processo, a Justiça brasileira enfrenta três desafios. O primeiro é desconstruir o esforço de reduzir a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023. As investigações deixam claro que a invasão das sedes dos Três Poderes foi apenas a etapa final de uma articulação muito mais ampla, conduzida ao longo de meses na mais alta cúpula do governo e das Forças Armadas.
Tentativas de instrumentalização institucional, disseminação de desinformação, manipulação da opinião pública: tudo isso precedeu o 8 de janeiro. O julgamento, portanto, tem o desafio de tornar evidente que o que está em pauta não é apenas um ato de violência coletiva, mas um plano sistemático para abolir o Estado Democrático de Direito. E que, inclusive, envolve uma série de tentativas e atentados violentos anteriores ao 8 de janeiro.
O segundo desafio é a responsabilização de membros das Forças Armadas. Embora não seja a instituição em si que está no banco dos réus, a presença de militares de alta patente no processo traz à tona uma questão mais profunda: a dificuldade histórica das Forças Armadas em se comprometerem de forma inequívoca com o regime democrático. Julgar esses indivíduos é essencial não apenas pela responsabilização penal, mas também para reafirmar o princípio de que militares estão subordinados ao poder civil.
O terceiro desafio é enfrentar uma estratégia de defesa que tenta construir uma história sem atores. Em sua maioria, os advogados dos réus não negam que houve um ataque à democracia. Ao contrário, se dizem solidários à Corte e aos ministros, num tom respeitoso. Mas nenhum de seus clientes, segundo suas próprias versões, estava diretamente na “cena do crime” ou no processo do golpe. Há o crime, mas é como se não houvesse responsáveis. Essa tentativa de esvaziar a autoria é uma forma sofisticada de impunidade, que o julgamento precisa desmontar com base em evidências e conexões demonstradas ao longo das investigações.
Impactos profundos no campo político e antropológico
O julgamento da tentativa de golpe terá efeitos que vão muito além do campo jurídico – ele reestrutura percepções, narrativas e afetos coletivos. As consequências são múltiplas, tanto do ponto de vista político quanto antropológico.
No plano político, uma das consequências mais imediatas é o risco da narrativa de “perseguição política” ganhar força. Os réus e seus aliados já operam na chave de que estariam sendo vítimas de um sistema judicial autoritário, que os persegue por suas ideologias e não por seus atos. Essa tese, já disseminada no ambiente digital, pode ser amplificada a depender do modo como o julgamento é conduzido — tanto na forma quanto na comunicação pública do processo.
Do ponto de vista antropológico, o julgamento também intervém em disputas sobre memória, pertencimento e identidade política no Brasil. A forma como esses réus serão representados — como vítimas da Justiça, como golpistas ou como patriotas equivocados — vai moldar imaginários coletivos e disputas morais por anos. Estamos diante de um momento que redefine os contornos do que é aceitável e do que é intolerável no espaço público. Trata-se, em última instância, de uma batalha simbólica pelo significado de democracia, Estado e autoridade no Brasil contemporâneo. As consequências, portanto, são profundas, e atravessam tanto a estrutura do sistema político quanto as formas como os brasileiros compreendem sua própria história recente e os limites da convivência democrática.
Quanto às manifestações populares – ou mesmo a ausência delas – em torno deste julgamento, vale lembrar que elas funcionam como um termômetro das tensões culturais e políticas que atravessam o Brasil. Ao contrário de momentos anteriores da história recente, como os protestos de 2013 ou os atos pró-impeachment de 2016, o julgamento dos réus por tentativa de golpe tem gerado mobilizações mais fragmentadas e localizadas, o que já é um dado importante.
Nesse contexto, a baixa adesão às manifestações convocadas em março de 2025 por Jair Bolsonaro revela uma perda de capacidade de mobilização de rua por parte desses setores. Isso indica que, apesar da atividade intensa nas plataformas digitais, o apoio concreto e massivo nas ruas — fundamental para pressionar instituições e sustentar politicamente determinadas narrativas — se enfraqueceu. O distanciamento entre a retórica digital e a presença física nas ruas mostra que a base popular engajada pode estar mais fragmentada, dispersa ou cansada após os eventos do 8 de janeiro de 2023.
Paralelamente, talvez uma das maiores lições do momento político que o Brasil atravessa é de que o bolsonarismo, embora tenha se originado na figura de Jair Bolsonaro, já ultrapassou há tempos sua liderança individual. Ele se transformou em um movimento político, ideológico e cultural, com códigos próprios, redes de apoio, militância digital, articulações religiosas, empresariais e até internacionais. O julgamento de Bolsonaro e seus aliados, portanto, é uma tentativa de responsabilização, mas não necessariamente o fim desse ecossistema.
É justamente no contexto de crise do líder que o movimento tende a se reinventar. Vemos o surgimento de novos porta-vozes, pré-candidatos e influenciadores que mantêm vivos os pilares do bolsonarismo — como o discurso antissistema, o apelo à moralidade religiosa, o combate às instituições, e a retórica da liberdade contra um suposto “Estado autoritário”. Em muitos sentidos, o bolsonarismo se tornou um modelo político replicável, com capacidade de se adaptar e de se infiltrar em outras candidaturas, inclusive nas esferas locais ou em novas arenas de disputa, como o próprio Senado.
Redes sociais e cenário eleitoral em 2026
Mais um aspecto a ser acompanhado é de que modo opinião pública pode influenciar o resultado do julgamento. Embora não tenha força legal sobre o STF, a opinião pública exerce um peso indireto e simbólico importante. O Supremo é uma instituição jurídica, mas opera em um ambiente altamente politizado, onde suas decisões são imediatamente interpretadas, julgadas e disputadas na arena pública — especialmente nas redes sociais.
O ecossistema digital é central nesse processo. Plataformas como X (ex-Twitter), YouTube, WhatsApp e Telegram são hoje as principais ferramentas para a construção de narrativas concorrentes sobre o julgamento. Elas funcionam como arenas de disputa onde os réus tentam se apresentar como perseguidos, enquanto movimentos democráticos tentam reafirmar o caráter legal e necessário do processo.
Muito além de refletir opiniões, as redes sociais moldam o senso comum, influenciam jornalistas, parlamentares, lideranças religiosas e, indiretamente, todos os envolvidos no sistema de Justiça — juízes, procuradores e advogados — que, embora estejam inseridos em um julgamento de caráter técnico, sabem que estão inseridos num contexto político altamente sensível. A forma como o Supremo se comunica, portanto, também é parte do julgamento. A clareza das decisões, a fundamentação técnica e o modo como se relaciona com a sociedade são fatores que influenciarão se esse julgamento será lembrado como justiça ou como revanche.
O julgamento dos envolvidos na tentativa de golpe terá, ainda, efeitos diretos e indiretos sobre o cenário eleitoral brasileiro. À medida que figuras centrais da extrema direita enfrentam responsabilização judicial, o campo político no qual elas atuavam se reconfigura. Isso pode abrir espaço para novas lideranças da direita radical, com discursos adaptados, ou intensificar a retórica de perseguição e vitimização para tentar preservar a base mais fiel.
Desdobramentos no cenário internacional
Os possíveis desdobramentos desse julgamento não se limitam às dinâmicas internas. Há uma crescente articulação internacional, especialmente com os Estados Unidos, que deve se intensificar no ciclo eleitoral. Grupos ligados à extrema direita brasileira já têm atuado em redes transnacionais — como a CPAC, think tanks conservadores e plataformas digitais — com o objetivo de alinhar estratégias de mobilização, desinformação e pressão política. A aposta agora é que Donald Trump e os EUA possam oferecer respaldo simbólico e político a essa corrente no Brasil, incluindo o uso de termos como “liberdade de expressão”, “perseguição política” e “guerra cultural” para internacionalizar o conflito.
Em outras palavras, o que está em jogo não é apenas a política brasileira, mas o equilíbrio democrático de todo o continente, num momento em que forças antidemocráticas operam em rede e com forte apoio externo em um cenário em que Trump tem desequilibrado as relações e seu papel na região.
O julgamento em curso pode ser fonte de lições valiosas para o futuro da democracia e do Sistema Judiciário no Brasil. Ele oferece uma oportunidade para o país refletir sobre os limites e as possibilidades de sua democracia. A primeira lição é que nenhuma democracia está garantida por si só — ela precisa ser defendida ativamente, inclusive contra ameaças internas e por meio de mecanismos institucionais de responsabilização. A tentativa de golpe não foi apenas um ato isolado, mas o resultado de um processo articulado, que testou os limites do sistema e revelou vulnerabilidades importantes.
A segunda lição diz respeito ao papel do Sistema Judiciário. O julgamento reforça a ideia de que o Estado de Direito deve ser capaz de alcançar até os atores mais poderosos — ex-presidentes, generais, ministros. No entanto, para que essa responsabilização não seja percebida como seletiva ou politicamente motivada, é fundamental que o Judiciário atue com transparência, fundamentação robusta e respeito irrestrito ao devido processo legal.