A ciência não acredita em milagres. Mas algumas coisas continuam a resistir a uma explicação científica. Assim, enquanto a ciência trabalha para explicá-las, talvez possamos caracterizar tais coisas como milagres, pelo menos provisoriamente.
A maternidade — a maternidade humana, para ser claro — parece tão óbvia, tão natural, que não requer nenhuma explicação. Mas uma hipótese pouco discutida de Andrey Vyshedskiy, professor de Neurociência da Boston University (EUA), sobre a evolução humana e, mais especificamente, sobre a evolução da imaginação e da linguagem, sugere o contrário. Embora ele próprio não faça tal afirmação, a hipótese de Vyshedskiy implica não apenas que a maternidade é um milagre, mas que, sem ela, não estaríamos aqui.
Nós, animais humanos, se assim quiserem, não somos como os outros animais. As mães humanas têm uma escolha. Elas podem abandonar seus recém-nascidos. O instinto não abrange o tipo de comportamento necessário para criar uma criança até o fim da gravidez, para criá-la até algo como a maturidade reprodutiva. Além disso, quando, depois de aprenderem a andar, os pequenos humanos ganham algum grau de autonomia, eles tendem a se afastar, muitas vezes com consequências trágicas. Vale lembrar que, nos Estados Unidos, as piscinas nos quintais são mais letais para as crianças do que as inúmeras armas de fogo em circulação.
Na teoria evolutiva, diz-se que os organismos evoluídos são modelos de seus ambientes. Isso significa que eles podem explorar e evitar a predação em seu ambiente porque estão adaptados a ele. A circularidade aqui se deve ao fato de que, em um sentido mais amplo, a evolução é circular. Seria um sistema fechado e bastante estático se as mutações ocasionalmente não proporcionassem a um organismo recém-nascido em um ecossistema estabelecido a capacidade de reproduzir mais do que seus coespecíficos. A história natural é o resultado disso.
Atraso do córtex pré-frontal
Mutações são aleatórias e, portanto, nem todas as mutações dão aos mutantes uma vantagem reprodutiva. De acordo com Vyshedskiy, há cerca de 70 mil anos, dois de nossos ancestrais exibiram tal mutação. Ele a chama de mutação de atraso do córtex pré-frontal (PFC, na sigla em inglês) porque ela retardou radicalmente o desenvolvimento do córtex pré-frontal. O resultado é — e era — um organismo radicalmente inadequado para seu ambiente natural.
Para colocar a questão em perspectiva, Vyshedskiy relata que os filhotes de chimpanzés não se afogam nem se afastam de seus protetores à medida que se tornam membros mais ou menos eficazes do bando em apenas alguns anos. Seu córtex pré-frontal se desenvolve rapidamente. Eles são adequados para seu nicho (na medida em que as atividades humanas não os destruíram).
A mutação do PFC é uma mutação que não confere ao seu portador uma vantagem óbvia e imediata. Muito pelo contrário. Parece roubar-nos os instintos de sobrevivência. Deixa-nos vulneráveis, condenados à morte: totalmente indefesos e, depois, imprudentemente errantes.
Como afirma Richard Levy, diretor do Instituto de Memória e Doença de Alzheimer em Paris, o córtex pré-frontal “é tão importante para os seres humanos que, se privados dele, nosso comportamento se reduz a ações-reações e automatismos, sem capacidade de tomar decisões deliberadas”. Devido a essa mutação natural, organismos como nós somos privados dele durante a infância, a maturidade sexual e até mesmo a idade adulta, caso cheguemos tão longe. Em igualdade de condições, não deveríamos existir. Esses primeiros mutantes deveriam ter morrido rapidamente. Não deveríamos estar aqui.
Cultura e linguagem
Mas aí temos o “milagre” da maternidade. Um “milagre” porque tudo aponta para a probabilidade de que as mulheres que deram à luz esses mutantes deveriam simplesmente tê-los abandonado. Isso acontece até hoje, em um contexto de injunções culturais avassaladoras sobre as belezas e os deveres da maternidade. Ainda mais há 70 mil anos, quando não existiam injunções culturais em torno da responsabilidade em criar esses mutantes. Pois, como a teoria de Vyshedskiy deixa claro, nem a cultura nem a linguagem (sempre entendida como linguagem recursiva) existiam antes desses mutantes.
Que fomos criados por mães é óbvio. O que é menos óbvio é como nos tornamos humanos graças a essa criação. A mutação do atraso do córtex pré-frontal, que tornou nossos ancestrais inadequados para seu nicho evolutivo, é, no entanto, a base da adaptação para a imaginação deliberada, ou o que Vyshedskiy chama de síntese pré-frontal (PFS, também na sigla em inglês).
A PFS é a capacidade de se envolver em imaginação deliberada e usar a linguagem plena. É a base da cultura, enquanto o atraso do PFC, por nos desadaptar ao nosso nicho natural, requer algo como a invenção da cultura. Pois a cultura, como Joseph Henrich, professor de Biologia Evolutiva Humana na Universidade de Harvard (EUA), deixa claro, é o que nos permite viver e, de fato, prosperar em um mundo para o qual, de outra forma, simplesmente não seríamos adequados. Ou, como o antropólogo Clifford Geertz (1926-2006) disse uma vez, “o homem depende de símbolos e sistemas simbólicos com uma dependência tão grande que é decisiva para sua viabilidade como criatura”.
A mutação do atraso do PFC é, então, indiscutivelmente, a mutação humana fundamental. Mas é um paradoxo. Ela nos afasta de nosso nicho natural, deixando os mutantes vulneráveis em vez de privilegiados. Mas se, por algum milagre, esses mutantes pudessem sobreviver, eles poderiam desenvolver imaginação, linguagem e cultura deliberadas. Apesar do atraso do córtex pré-frontal, não morremos em nosso nicho natural; graças a ele, fomos capazes de expandir para fora desse nicho e colonizar o planeta inteiro.
Mas essa sobrevivência exigiu um milagre. As mães primatas, sem treinamento cultural significativo, geralmente não abandonam seus filhotes. Isso se deve ao instinto. Além disso, seus filhotes são relativamente autossuficientes logo após o nascimento. Eles estão bem equipados para explorar a proximidade constante da mãe, capazes de desempenhar um papel significativo em seus próprios cuidados, capazes de se aconchegar à mãe e se agarrar a ela, enquanto ela alegremente faz o que quer que seja que esteja fazendo naquele momento (o que nunca vai muito além de descansar, dormir, cuidar da higiene e procurar comida).
Contrariando instintos
Os descendentes mutantes teorizados por Vyshedskiy teriam sido muito diferentes dos não mutantes, que seriam mais resistentes e menos exigentes, precisando de menos cuidados maternos. Nascemos incapazes de nos aconchegar ou nos agarrar às nossas mães, incapazes de exercer qualquer tipo de autonomia na nossa própria alimentação.
Durante meses, talvez anos, nossa alimentação depende inteiramente delas. Nem mesmo quando conseguimos nos locomover ficamos em situação muito melhor. Uma vez que começamos a andar, parecemos compelidos a agir de acordo com um desejo inconsciente de morte. Para que isso não aconteça, precisamos de um grau de cuidado bastante antinatural, ou seja, não instintivo (seja das mães ou do Estado).
Os bebês mutantes não teriam sido reconhecidos pelos sistemas perceptivos de suas progenitoras; a falha no reconhecimento — ou melhor, na cognição — teria, deveria ter, levado ao abandono. E, no entanto, eles não foram abandonados. Algo inexplicável aconteceu: as mães, instintivamente relutantes em cuidar de filhos mutantes, deram-lhes ao menos os cuidados mínimos necessários, respondendo a algo como uma obrigação natural. Essa é a definição mínima de um milagre: algo que as regularidades naturais preveem que não deveria ter acontecido, aconteceu.
O milagre da maternidade é que as fêmeas dos primeiros hominíneos não simplesmente se afastaram das criaturas estranhas que haviam gerado. Essas criaturas teriam sido percebidas por seus sistemas naturais de percepção como diferentes. Não está claro como tais criaturas teriam provocado o dever excessivo de cuidar que exigiam daqueles que as geraram.
Alguns invocam hormônios como a oxitocina e a prolactina para explicar isso, mas, na ausência de uma estrutura cultural e legal que, por assim dizer, naturalize a maternidade, não está claro quão eficazes os hormônios seriam por si só. Eles falham com bastante frequência hoje em dia, mesmo em nosso contexto legal e cultural.
Portanto, enquanto a ciência continua a fazer seu trabalho, vale a pena questionar se, caso a teoria da evolução humana de Vyshedskiy esteja correta, a maternidade não deveria ser considerada um milagre. De que outra forma explicar por que aquelas mães primíparas de outrora não simplesmente viraram as costas para seus filhos irreconhecíveis? De que outra forma explicar por que elas, sem reconhecer que haviam dado à luz a própria Humanidade, simplesmente não os deixaram morrer expostos à natureza?