O Congresso dos Estados Unidos aprovou dias atrás um marco regulatório inédito para ativos digitais, composto por três leis fundamentais: a Lei de Garantia de Stablecoins (o GENIUS Act), a Lei de Clareza para Ativos Digitais (o CLARITY Act)) e a Lei Contra a Moeda Digital de Banco Central para o Varejo (o Anti-CBDC Act). Essas iniciativas remodelam o ambiente financeiro do país e servem como referência num momento de intensa transformação tecnológica em todo o mundo.
A Lei de Garantia, aprovada no dia 17 de julho e sancionada no dia seguinte, estabelece normas rígidas para a emissão das stablecoins, que são ativos digitais projetados para manter valor estável em relação a moedas tradicionais, como o dólar. O objetivo é oferecer uma alternativa digital para pagamentos e transferências, minimizando a volatilidade das criptomoedas convencionais. O ponto central está na exigência de reservas reais e seguras equivalentes ao valor emitido, fiscalização rigorosa e auditorias regulares.
As stablecoins diferem das criptomoedas tradicionais — como a bitcoin ou o ether — justamente porque estas últimas não possuem lastro fixo nem garantia de paridade com moedas nacionais; são altamente voláteis e seu valor oscila de acordo com a oferta, demanda e especulação de mercado. Enquanto as stablecoins buscam estabilidade e previsibilidade para facilitar o uso cotidiano, as criptomoedas tradicionais são vistas mais como instrumentos de investimento de risco ou reserva de valor alternativo.
No mesmo dia 17 de julho, a Câmara dos Deputados aprovou a CLARITY Act, que traz definições objetivas sobre a natureza jurídica dos ativos digitais, estabelecendo critérios para distinguir, por exemplo, se determinado ativo digital deve ser regulado como uma mercadoria (commodities, como ouro ou petróleo) ou como valor mobiliário (título negociado no mercado financeiro).
Ativos digitais são representações eletrônicas de valor ou direitos que podem ser transferidos, negociados ou usados para acessar serviços em redes digitais. Esse detalhamento é fundamental para que cada órgão público saiba a quem compete fiscalizar, trazendo mais segurança e previsibilidade para investidores, empresas e consumidores. O texto ainda aguarda votação no Senado, mas já é considerado um avanço estrutural no setor.
Também no dia 17 foi aprovada na Câmara a Anti-CBDC, que impede o Federal Reserve de criar uma moeda digital oficial acessível ao público em geral. Uma moeda digital de banco central seria uma versão eletrônica do dólar, emitida diretamente pelo Estado, para ser utilizada por qualquer cidadão ou empresa. Nos Estados Unidos, a decisão de barrar esse avanço está associada ao temor de vigilância estatal excessiva, riscos à privacidade e à concentração de dados sensíveis nas mãos do governo.
No Brasil, essas mudanças têm reflexo imediato. O Banco Central brasileiro testa sua própria moeda digital, chamada Drex, e observa de perto o crescimento das stablecoins, especialmente aquelas lastreadas em dólar, já utilizadas em larga escala por brasileiros. A importância de ter regras claras, uma fiscalização rigorosa e uma evidente proteção aos direitos do consumidor é fundamental. De fato, é o melhor modo para evitar crises de confiança, proteger usuários e garantir a integridade do sistema financeiro.
Contudo, a adaptação da legislação nacional à realidade brasileira, com suas idiossincrasias, tanto para supervisionar emissores locais quanto para regular empresas estrangeiras atuantes no mercado doméstico, ainda não foi totalmente alcançada em nosso país. Persistem muitos pontos não solucionados com relação às restrições regulatórias (limites de valor e proibição de autocustódia), aos riscos sistêmicos e financeiros (potencial de desestabilizar o câmbio e aumentar as vulnerabilidades), aos altos custos de conformidade (demandas de auditoria frequentes, lastro integral em ativos seguros, que aumentariam as barreiras de entrada, exigências de compliance e supervisão extensa, etc.), às incertezas jurídicas e institucionais (falta de regras claras sobre uso, impostos e relação com o Drex) e preocupações relacionadas com a lavagem de dinheiro (os reguladores receiam evasão e ilícitos por meio destablecoins).
A Lei de Clareza para Ativos Digitais aponta outro desafio: é fundamental que o Brasil defina com precisão se cada ativo digital deve ser juridicamente considerado como mercadoria ou valor mobiliário, cabendo ao Banco Central ou à Comissão de Valores Mobiliários a responsabilidade de fiscalização. Sem um marco legal definido, crescem as disputas judiciais e a insegurança jurídica para empresas e investidores. A experiência indica que os conceitos “estáveis” e a delimitação institucional clara são indispensáveis para o desenvolvimento saudável do setor e para a proteção do interesse público diante de fraudes e riscos sistêmicos.
O debate sobre a moeda digital estatal brasileira também é impactado pela iniciativa americana. A discussão sobre privacidade, vigilância e concentração bancária está em curso no Brasil com o Drex, e o alerta dos Estados Unidos mostra a importância de garantir que avanços tecnológicos venham acompanhados de proteção à liberdade e à privacidade do cidadão, sem criar mecanismos de controle excessivo por parte do Estado.
Os avanços regulatórios, ao menos nos Estados Unidos, tendem ao equilíbrio entre inovação, proteção ao consumidor, segurança jurídica e respeito aos direitos fundamentais. Esta também deverá ser a prioridade no debate brasileiro atualmente em curso. Nosso país tem a oportunidade de aprender com a experiência internacional, adaptando as melhores práticas à sua própria realidade.
O futuro do Drex, das stablecoins e do ecossistema nacional de ativos digitais depende da construção de regras claras e transparentes, que promovam o desenvolvimento tecnológico, a proteção do interesse público e a confiança dos usuários. Em um mundo crescentemente digitalizado, as decisões tomadas em outros polos relevantes como EUA, China, Índia e a União Europeia sobre o modelo que adotam – ou pretendem adotar – servem de orientação para o sistema financeiro de outros países, incluindo o do nosso país.
O verdadeiro desafio está em impulsionar a inovação com responsabilidade, mantendo diálogo aberto com a sociedade e transformando as experiências globais em soluções adaptadas à nossa realidade — avançando com ousadia, sem imitar cegamente, mas construindo um caminho próprio e sustentável para o Brasil digital.