Na terça-feira 18 de fevereiro, o Brasil foi impactado com a denúncia oferecida pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, ao Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do país, de que 34 pessoas, entre civis e militares, planejaram e executaram atos contra o estado democrático de direito.
Com teor de imensa gravidade, o documento de quase 300 páginas aponta para uma organização criminosa que seria liderada pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, tendo como número dois o candidato a vice em sua chapa derrotada, o General Braga Netto (preso há dois meses), além de um núcleo principal com mais seis integrantes, formado por ministros e assessores civis mais próximos do ex-presidente. São eles: o policial federal Alexandre Ramagem, então chefe da Agência Brasileira de Inteligência; seu superior hierárquico, General Augusto Heleno, Ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência; o também policial federal Anderson Torres, à época Ministro da Justiça; o Almirante Almir Garnier, então comandante da Marinha do Brasil; General Paulo Sergio de Oliveira, Ministro da Defesa; por fim, o tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro.
A acusação da PGR aponta crimes como a formação de uma organização criminosa armada, tentativa de golpe de Estado e depredação do patrimônio público, com base em provas como mensagens, planilhas e manuscritos. O plano teria começado em 2021 com ataques ao sistema eleitoral, culminando na invasão dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, causando um trauma nacional e prejuízo superior a R$ 20 milhões. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, analisará a denúncia.
A denúncia feita pela PGR teve grande repercussão nacional e internacional e produzirá um forte impacto na agenda política brasileira de 2025. Nesse sentido, algumas hipóteses podem ser sugeridas:
a) A extrema direita, ao mesmo tempo que deverá dar demonstrações de que cerrará fileiras para defender o ex-presidente, tende a se fragmentar ainda mais, com o aumento das movimentações e cotoveladas na luta pela definição do ungido a substituir o inelegível e possivelmente criminoso condenado Jair Bolsonaro como candidato presidencial em 2026 do grupo. Junto aos já aventados Eduardo Bolsonaro, Michele Bolsonaro e Tarcísio de Freitas, novos nomes devem surgir;
b) Essa situação também tende a encorajar outros segmentos da extrema direita, como o outsider Pablo Marçal, e parte da direita que até aqui flertou com o bolsonarismo, mas tende a soltar a mão do ex-presidente e começar a marcar um perfil independente, como os governadores Ronaldo Caiado (GO), Zema (MG), Ratinho Júnior (PR) e outros;
c) Para o governo, a denúncia e o julgamento ao longo dos próximos meses podem representar o respiro que Lula necessitava para reorganizar seu ministério e sua coordenação política. O presidente precisa realizar as entregas de políticas públicas sociais planejadas para essa segunda parte de mandato e afinar sua estratégia de comunicação com o eleitorado, afim de recuperar a iniciativa política e, por conseguinte, a aprovação de seu governo;
d) O Centrão, o maior bloco político do Congresso brasileiro, com seu pragmatismo fisiológico, mantém um pé em cada barco (governo e oposição) e aproveitará essa fragilidade de Bolsonaro para fazer com o ex-presidente o mesmo que já começou a fazer com Lula, após a queda na aprovação do governo federal, ou seja, subir o preço de seu apoio.
Planos incluíam assassinato do presidente e vice
A denúncia da PGR está ancorada em abundantes provas produzidas pelos próprios membros da organização criminosa contra si mesmos reunidas pela Procuradoria Geral da República. Pode parecer anedótico, mas foram apreendidas com os réus, durante as investigações da Polícia Federal, inúmeras anotações em cadernetas e computadores; trocas de mensagens em aplicativos de mensageria; minutas golpistas (sim, eles produziram e guardaram minutas golpistas!); espionagem e perseguição de adversários políticos; desvio das funções dos agentes e instituições de estado por eles comandadas, notadamente as de segurança e vigilância.
O documento divulgado com a denúncia não somente reforça as informações presentes nas investigações da Polícia Federal brasileira como mostra também que os golpistas tinham planejado o assassinato do presidente e vice eleitos, Lula da Silva e Geraldo Alckmin, e do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro do Alexandre de Moraes, membro do STF. O plano foi batizado pelos criminosos de “Punhal Verde Amarelo”.
Também merece destaque a descrição das estratégias usadas por essa organização criminosa para instrumentalizar instituições do Estado brasileiro durante meses, a exemplo da Agência Brasileira de Inteligência – Abin (com a criação de uma Abin paralela) e da Polícia Rodoviária Federal (PFR), para consecução de seus objetivos criminosos.
De acordo com o relato da PGR, houve atos deliberados de emboscada ao Ministro Moraes, como evidenciam mensagens trocadas entre agentes secretos do Estado. Atuando ilegalmente e à margem de suas funções, esses agentes chegaram a se escamotear nas imediações da residência de Moraes, visando sequestrá-lo e assassiná-lo.
O método do ódio
A PGR registra ainda, em sua denúncia, que ao longo de quase dois anos, os líderes da organização criminosa manifestaram de forma exaustiva três narrativas mentirosas:
a) As urnas seriam fraudadas e o sistema eleitoral não era confiável; b) Os juízes do Tribunal Superior Eleitoral não seriam imparciais e estariam favorecendo o candidato Lula da Silva e; c) O estímulo à insurgência violenta pela não aceitação dos resultados, tal como ocorrera em 6 de janeiro de 2021 na invasão do Capitólio estadunidense. No Brasil, a ação visava justificar uma possível intervenção das Forças Armadas por meio da decretação de algum expediente ilegal, por meio de uma Lei de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), de um Estado de Sítio ou mesmo de um Estado de Defesa. Com isso, Jair Bolsonaro seguiria de forma ilegítima no poder.
Essas narrativas foram veiculadas por meio de pronunciamentos públicos e entrevistas, bem como através de toda uma rede coordenada em mídias sociais que contou com “influencers”, “blogueiros” e pretensos jornalistas, somados aos diversos porta-vozes políticos do bolsonarismo.
Entre as ações criminosas documentadas, evidencia-se ainda a criação de um sistema de “business intelligence” com único propósito de mapear os municípios onde Lula da Silva vencera com grande margem de votos no primeiro turno das eleições para que a PRF pudesse realizar blitzs e bloqueios. O intuito era dificultar o sufrágio universal nestas cidades, afim de reverter o resultado em favor da chapa Bolsonaro-Braga Netto.
A análise das inúmeras mensagens trocadas entre os membros da organização criminosa mostrou que os próprios reconheciam não terem encontrado qualquer indício de fraude vinculada ao sistema eletrônico de votação. Isso, contudo, não impediu os acusados de fabricarem um escândalo denunciando uma vulnerabilidade inexistente das urnas eletrônicas, buscando difundir de forma coordenada e criminosa a falácia de que os resultados das eleições teria sido modificado a favor de Lula da Silva. O episódio em questão, aliás, ficou conhecido como #BrazilWasStolen e foi promovido pelo argentino Fernando Cerimedo, o mesmo que em 2024 viria a coordenar o marketing digital da campanha do candidato Javier Milei à presidência da Argentina.
Desvirtuamento do estado
Também fica clara a instrumentalização de parte das Forças Armadas, seja permitindo os acampamentos golpistas instalados nas portas dos quarteis ao longo de todo território nacional (e em especial na porta do Quartel General (QG) do Exército em Brasília), seja amplificando suspeitas infundadas sobre a integridade das urnas eletrônicas e a integridade do sistema de votação.
Relembre-se que foi do acampamento instalado na porta do QG do Exército em Brasília que partiu a horda golpista responsável pelo assalto e depredação das sedes dos Três Poderes no fatídico 8 de janeiro de 2023, dia em que Brasília foi atacada. No mesmo acampamento foi fabricado o artefato explosivo utilizado no atentado terrorista falido que pretendia explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, no dia 24 de dezembro de 2022.
Tudo isso aponta que a organização golpista funcionava de forma articulada entre seus diversos núcleos organizativos. Ações jurídicas, políticas e militares, por exemplo, se coadunavam com as estratégias e ações de comunicação nas mídias sociais.
Prazo para a defesa dos acusados está correndo
O ministro relator do caso no Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, deu prosseguimento à denúncia e prazo de 15 dias para os acusados apresentarem suas defesas. Dessa forma, o STF mantém o rigor até aqui observado tanto pela Polícia Federal em seu inquérito como pela PGR em sua denúncia, garantindo aos acusados o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
Esse processo acaba funcionando como uma oportunidade de redenção das instituições brasileiras de investigação, denúncia e julgamento, a saber: PF, PGR e Poder Judiciário.
Depois dos atropelos, malfeitos e deturpações legais promovidos por eles no âmbito da Operacão Lava Jato, que traumatizou o país, essas instituições parecem estar dando a volta por cima em suas imagens institucionais e voltando a atuar com a legalidade e o rigor técnico-profissional que a sociedade brasileira espera delas.
Desta vez, não vimos pirotecnia na ação da Policia Federal que se viu quando Sérgio Moro foi ministro da Justiça. Não houve drones, prisões espetaculares, nem acusados sendo algemados e expostos em praça pública antes mesmo de seus julgamentos. Ao contrário, viu-se uma polícia discreta e profissional. Nenhum indiciado foi sequer fotografado sendo conduzido algemado durante toda a investigação.
A “falta de provas e o excesso de convicções”, assim como interesses políticos não republicanos dos persecutores da Lava Jato, foram substituídos agora por uma atuação baseada na apresentação de provas cabais, por um trabalho minucioso de investigação e pelo recato institucional dos agentes públicos envolvidos.
O julgamento dos acusados pela trama golpista será transmitido pela TV Justiça, o que permitirá à sociedade brasileira, e mundial, o conhecimento a fundo desse que é, sem dúvida nenhuma, o mais sombrio capítulo da nossa jovem democracia desde o final da ditadura.
O desejo dos brasileiros democratas é que os responsáveis sejam responsabilizados e que a verdade, memória, justiça e reparação democráticas sejam as vitoriosas nesse processo, servindo de exemplo para que todos aqueles que não têm apreço pela democracia se sintam desencorajados de atentar novamente contra a ordem democrática. Que impulsos autocráticos, de fechamento de regime e perpetuação no poder, nunca mais encontrem guarida em nosso país.