Na tarde da última terça, a normalidade de um dia de trabalho foi interrompida por mensagens de amigos da Penha, no Rio de Janeiro, uma das regiões invadidas durante a megaoperação policial que aterrorizou a cidade por 15 horas e deixou 121 mortos.
Convivi com alguns moradores do Complexo da Penha por 18 meses durante minha pesquisa de campo na região e recebi, de vários deles, mensagens sobre o horror que se espalhou pela cidade naquele dia. Numa delas, uma amiga e interlocutora de pesquisa dizia, sob voz fortemente emocionada:
Priscilla, nos ajude, divulgue a situação da Penha e do Rio. Você foi lá, você viu; estamos abandonados. Não tem projeto social, investimento, educação. Não tem cultura.
A chamada “Operação Contenção” foi deflagrada logo nas primeiras horas da manhã. Pegou criminosos e moradores dos complexos da Penha e do Alemão de surpresa, deixando um rastro de medo, violência e morte que rapidamente se espalhou pelas ruas.
Ao contrário do que declarou Cláudio Castro, governador do Estado, a operação não foi um sucesso. Foi mais um capítulo da brutalidade institucionalizada, em que a confiança na democracia e na justiça foi, mais uma vez, esvaziada pelo Estado. De forma perversa, a operação revelou a dimensão do abandono em que vivem os cidadãos das comunidades cariocas, mostrando como a violência é a língua dominante no Brasil.
O abandono que gera violência
Minha amiga tem razão: os setenta corpos que hoje estamparam as capas dos jornais e os 121 mortos na operação são o resultado amargo de anos de descaso social. É o balanço cruel da ausência de investimento em educação, cultura e oportunidades para milhões de brasileiros que vivem em comunidades no Rio e em todo o país.
Fala-se muito em “retomar o morro” e “acabar com o crime”, especialmente quando as eleições se aproximam. Afinal, dados mostram que essa é uma das preocupações centrais da população. Mas estamos mesmo diante de quê?
O que acontece no Rio é uma engrenagem antiga e complexa, em que o crime se alimenta das mais variadas formas de abandono do Estado para cooptar e, literalmente, formar um exército de jovens. Sem horizontes, eles se deslumbram com os chefes do tráfico, com suas armas, festas e mansões. Como me disseram na Penha: “os jovens são atraídos pela cultura do crime”.
Antes, igrejas, ONGs e projetos sociais desempenhavam um papel central no preenchimento do vazio deixado pelo Estado nas comunidades. Ofereciam serviços, assistência e, sobretudo, uma experiência de pertencimento e de sentido. Hoje, essas instituições competem com a estrutura e o capital simbólico do crime organizado; sua linguagem, seus gestos, sua estética, seus “valores”. Uma cultura que distorce ideias de coragem e resistência ao sistema, e seduz jovens com a promessa de dinheiro e poder.
O mecanismo lembra o que a filósofa Chantal Mouffe observa sobre os movimentos de extrema direita na atualidade: quando certas vozes são sistematicamente silenciadas no debate democrático, elas se radicalizam. No Rio, ao negar às comunidades seus direitos mais básicos, deixando-as à própria sorte, o Estado produziu o mesmo efeito. O crime se imbricou à vida cotidiana e passou a oferecer, sobretudo aos jovens, aquilo que o Estado não oferece: perspectiva de vida e pertencimento.
Nas comunidades cariocas, a convivência com o crime é uma via de mão dupla. Por um lado, o tráfico aterroriza. São tiroteios quase diários entre facções rivais; moradores obrigados a pagar “pedágios” para ter acesso a serviços básicos como luz, internet ou gás de cozinha. Ruas com barricadas perigosas, paredes marcadas por tiros, pichadas com siglas da facção.
Por outro, meninos de 14 ou 15 anos que empunham fuzis e vendem drogas em barracas a céu aberto – como se fossem laranjas numa banca de feira – não são vistos como estranhos, nem como inimigos. São filhos de vizinhos, de amigos; são ex-colegas de escola. São primos, cunhados, irmãos, filhos da “mulher da oração”. Jovens que, como testemunhei no Complexo da Penha, cumprimentam com um “boa noite” ou “a paz [de Jesus]” os que passam pelas ruelas apertadas, enquanto exibem, pendurados no peito, balas e fuzis.
Para muitos moradores, esses jovens não são “o crime”. São meninos manipulados e seduzidos por um sistema que lhes promete dinheiro, poder, resistência e propósito, mesmo sabendo que, muito antes de conquistarem tais coisas, cairão nas mãos do Estado, presos ou mortos. É daí que nasce a revolta: o Estado, como o crime, oferece a mesma escolha: matar ou morrer.
A violência como linguagem
Ainda há muito a apurar sobre o que realmente aconteceu em Vacaria. Passado o choque, a mídia tem divulgado os detalhes do cerco policial aos criminosos. Houve resistência armada às prisões? Fala-se em rendições, em execuções. À medida que as versões se multiplicam, uma série de questionamentos começa a surgir. Por que a área do massacre não foi protegida? Por que imagens e vídeos mostram corpos despidos e decapitações?
Familiares alegam que foram impedidos de ajudar na rendição de seus filhos e no resgate dos corpos. Dizem ter visto marcas de tortura nos mortos – mãos amarradas, tiros na nuca, facadas. Há fotos e vídeos enviados por moradores mostrando corpos empilhados na mata, vestidos com paramentação semelhante à do exército brasileiro, mas sem sinais claros de tortura.
Outro vídeo, amplamente divulgado, mostra um grupo de traficantes se entregando pacificamente à polícia, que também parece agir de forma contida. Uma profunda guerra de narrativas entre a população, o poder público e a polícia já começa a se desenhar.
Enquanto amigos e familiares dos mortos contestam as versões policiais, as perguntas permanecem: por que os corpos foram despidos quando colocados em praça pública? Por que a polícia não protegeu a cena do crime, deixando que o próprio Estado se encarregasse do resgate? Em breve, a polícia falará em violação da cena do crime, perda de evidência para as investigações e fraude processual. No fim, será mais uma das muitas barbáries cuja verdade se perderá, enquanto narrativas tomam o lugar dos fatos, perpetuando a desconfiança no Estado e a sensação de impunidade e injustiça na sociedade.
Enquanto o país aguarda os resultados das investigações e lamenta o horror, nosso papel não pode ser outro senão pensar criticamente sobre cada uma dessas narrativas e sobre como a violência tem sido usada como linguagem tanto por criminosos quanto pelo Estado.
Se os criminosos aterrorizam o quotidiano dos moradores, o Estado o faz de forma velada e, nesse triste episódio, institucionalizou a morte pela segunda vez. A primeira, pela negligência, que mata social e simbolicamente; a segunda, por abrir fogo na comunidade, instaurando o terror e consumando a morte física.
Até quando?
Há uma frase célebre do crítico francês Alphonse Karr, do século XIX, que diz: quanto mais as coisas mudam, mais tudo permanece o mesmo. Após a sangrenta “operação”, traficantes já são vistos na cena do crime recolhendo armas. As drogas já voltaram a ser vendidas e o “dono do morro da Penha”, o “Doca”, continua liderando, de seu esconderijo, protegido por seus “seguranças” armados. Nada mudou. E, como tem sido há décadas no Brasil, os mortos continuam servindo de discurso que manipula os vivos.
Como bem disseram minha amiga e tantos outros que conheci no Complexo da Penha, além de pesquisadores, o problema não é o tráfico somente, mas a negligência sistêmica do Estado. A violência que atinge os moradores vem das duas frentes – do crime e do poder público – e é a mesma: a de um país que aprendeu a conviver com o abandono e a banalizar seus horrores. Enquanto se disputa quem está certo ou errado neste terrível episódio, o que morre é o direito a uma vida digna.



			
                               
                             

		
		