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O militarismo de Trump não é exceção, mas um reflexo da cultura norte-americana

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O militarismo de Trump não é exceção, mas um reflexo da cultura norte-americana

Tanques e robôs militares nas ruas, soldados ensinando adultos e crianças a empunhar armamentos. Enquanto isso, manifestantes são contidos por forças de segurança, imigrantes são deportados em voos militares e bombas são atiradas no Oriente Médio. O cenário parece uma sinopse distópica, mas resume as imagens que povoam os noticiários sobre o segundo governo Trump.

Após os episódios recentes, em que a Guarda Nacional atacou manifestantes nos protestos de Los Angeles, e, dias depois, uma suntuosa parada militar celebrou o 250º aniversário do exército e os 79 anos do próprio presidente, parte da opinião pública classificou essas medidas como “não usuais” e “anti-americanas”, por serem antidemocráticas. No campo externo, o bombardeio às instalações nucleares do Irã, conduzido sem autorização do Congresso, torna o cenário ainda mais complexo. Mas seriam estes eventos uma ruptura com a tradição democrática dos EUA, ou apenas a intensificação de algo já enraizado nessa sociedade?

A ilusão da excepcionalidade americana

Muitos debates que apontam os momentos mais extremos do segundo governo Trump como desvios de um sistema supostamente saudável se baseiam em pressupostos que merecem ser questionados. Um deles é a ideia de que os EUA seriam um modelo bem-sucedido de controle civil sobre as forças armadas. Essa imagem é frequentemente construída em oposição às experiências latino-americanas. Por não terem histórico de golpes, se presume que não haja influência militar na política.

Outro pressuposto amplamente difundido é que os valores tradicionais da política estadunidense seriam incompatíveis com o uso das forças armadas dentro do território nacional. Nessas interpretações, o liberalismo político e econômico seria contrário ao culto às instituições militares e à prática da guerra.

Esses argumentos, no entanto, reforçam uma visão idealizada e reducionista do papel das forças armadas e da estrutura política e social do país. E não se sustentam diante de um olhar mais atento à sua história recente.

Militarização da política e da vida civil

As instituições militares têm sido uma força importante e atuante na política dos EUA, com presença em lobbies no Legislativo, associações comunitárias e no endosso ou rejeição a figuras políticas. Em 2024, uma pesquisa realizada pelo instituto Pew Research Center indicou que mais de 60% dos veteranos de guerra apoiaram a eleição de Trump, em oposição a Kamala Harris, repetindo a tendência de 2016, quando generais e almirantes divulgaram um manifesto em apoio ao candidato republicano.

Além disso, as práticas do capitalismo neoliberal frequentemente se articulam com formas de violência. Em uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Estudos de Defesa, discuto o conceito de “militarismo liberal” e argumento que o liberalismo não se opõe ao militarismo, pelo contrário, é condição para sua legitimação.

A cultura militarizada também está presente em diversos aspectos da vida cotidiana do cidadão norte-americano. O culto à hierarquia, à disciplina, à masculinidade dominante e ao patriotismo atravessam o dia a dia por meio da cultura, do vestuário e dos esportes, construindo o modo de vida militar como modelo para a organização social. Assim, a violência torna-se uma constante, mesmo fora da guerra ou do conflito direto.

Estas estruturas se refletem não apenas nos elevados orçamentos militares – que superam US$ 800 bilhões anuais – e nas intervenções no exterior, mas também na consolidação de um ostensivo mercado privado da violência. A cultura do militarismo está presente na indústria cinematográfica, em programas de treinamento militar para jovens nas escolas, em organizações sociais de auxílio a veteranos de guerra e na militarização de políticas públicas, como segurança pública e imigração.

O militarismo de Trump é síntese, não ruptura

Não se trata, aqui, de minimizar ou normalizar as ações do governo Trump. Pelo contrário: é importante reiterar sua gravidade, entendendo a intensificação do militarismo como parte da estratégia autoritária trumpista e, mais amplamente, das chamadas novas direitas globais.

Uma das táticas desse governo para legitimar o aumento da militarização é estimular a percepção de que o país está constantemente sob ameaça. Isso reforça discursos de “lei e ordem”, que são instrumentalizados para justificar o uso das forças armadas em protestos, segurança pública e controle de fronteiras. Paralelamente, o presidente amplia seus poderes por meio de ordens executivas – instrumentos legais para tomar decisões sem passar pelo Congresso. Assim, qualquer forma de oposição, interna ou externa, tende a ser silenciada pelo uso ou pela ameaça da força.

Não é trivial, por exemplo, a invocação de dispositivos legais que remontam contextos de conflitos, como a lei Alien Enemies Act, de 1798, que permite deportar cidadãos oriundos de nações consideradas hostis em tempos de guerra. Externamente, intensificam-se ações imperiais, envolvendo desde a ameaça constante de anexação de territórios até o emprego direto da força, conforme observado no contexto dos bombardeios às instalações nucleares iranianas. Estas ações não apenas mostram os limites das falas recorrentes do presidente sobre o “não-envolvimento” do país em guerras em seus mandatos, mas também apontam para a continuidade da militarização da política externa e da espetacularização das demonstrações de violência como forma de dissuasão de adversários.

É possível afirmar que o presidente consegue aplicar essas medidas porque já existe, há muito tempo, um aparato institucional e cultural que as permite. Um sistema que trata imigração como questão de segurança, militariza a polícia (de forma muitas vezes racista), e mantém um vasto aparato econômico, político e até acadêmico voltado para a lógica militar. Além disso, o militarismo está tão presente no cotidiano que se torna naturalizado socialmente.

Por uma crítica à naturalização da lógica militar

Um sintoma dessa cultura foi a presença de veteranos de guerra nas manifestações contra Trump, organizadas pelo movimento “No Kings Day”. Manchetes e reportagens ressaltaram o “heroísmo” e o caráter “apolítico” desses indivíduos, que reivindicavam maior proteção do Estado e protestavam contra os cortes nos serviços de saúde e aposentadoria dos militares.

Também circularam nas redes sociais imagens de veteranos idosos sendo detidos por forças policiais, acompanhadas de manifestações de indignação. Em uma dessas reações, o Diretor do Instituto Veterans for Peace, Michael T. McPhearson, criticou o desrespeito às “pessoas que realmente vestem uniformes” no país. Os comentários nas postagens manifestaram gratidão e os chamavam de “verdadeiros guerreiros”.

Assim, focar apenas na figura de Trump como um problema excepcional encobre um desejo de retorno a uma suposta normalidade que, na prática, também é marcada pela violência.

O desafio, portanto, não é apenas conter os abusos de um governante específico, mas questionar os mecanismos que tornam possível, e até desejável, a presença constante da lógica militar em espaços civis. Quando o modelo militar se torna parâmetro para lidar com conflitos sociais, protestos, desigualdades e demandas populares, a sociedade corre o risco de se tornar refém de sua própria retórica de segurança.

Mais do que identificar episódios isolados, é preciso reconhecer e questionar as estruturas, instituições e práticas que naturalizam e sustentam os militarismos no cotidiano. Promover uma cultura anti-militarista implica observar como certos valores — como o culto à força, à hierarquia e à obediência — se tornam modelos para a vida em sociedade. E, sobretudo, exige o esforço constante de rever nossas lentes, substituindo as miras pelas miradas.


A divulgação deste artigo tem o apoio da Capes.

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