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O Nobel da Paz e o silêncio do Brasil sobre Maduro

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O Nobel da Paz e o silêncio do Brasil sobre Maduro

Ao longo dos últimos quinze anos, a Venezuela passou por um processo de deterioração institucional acelerado e profundo. As eleições tornaram-se controladas, e os meios de comunicação independentes foram silenciados. Os mecanismos de controle democrático, como o Parlamento e o Judiciário, foram capturados por um projeto de poder que se diz popular, mas que depende do medo para sobreviver.

A violência direta se soma à violência estrutural, para usar o termo do sociólogo Johan Galtung, que impede milhões de venezuelanos de exercer direitos básicos: acesso à alimentação, saúde, educação e liberdade de expressão.

Cerca de oito milhões de pessoas deixaram o país, o maior deslocamento da história recente da América Latina. Trata-se de uma crise social de proporções continentais.

Essencial a essa engrenagem autoritária é um vasto ecossistema de repressão. O Exército, a Guarda Nacional Bolivariana, o serviço de inteligência Sebin, a DGCIM e a polícia, junto de milícias paramilitares conhecidas como colectivos, formam um sistema de vigilância e intimidação permanente.

Segundo relatórios da ONU e de organizações de direitos humanos, esse sistema recorre sistematicamente à tortura, detenções arbitrárias e execuções extrajudiciais para silenciar a oposição.

O controle territorial e social exercido por essas forças impede que a oposição se organize livremente, tornando cada ato de protesto uma demonstração de coragem. O Estado venezuelano, em sua forma atual, é um regime de exceção.

Neste sentido, o Nobel da Paz concedido a María Corina Machado envia aos venezuelanos e ao restante do mundo uma mensagem de reconhecimento de sua luta, e de que a não violência é um método de ação política legítimo e necessário.

A liderança de María Corina Machado nasceu sobretudo da capacidade de articular indignação por meios não violentos. Ela simboliza aqueles que, mesmo diante da repressão, insistem em ocupar as ruas, organizar redes de apoio e denunciar as violações que o regime tenta ocultar. O Comitê Nobel reconhece, portanto, sua trajetória pessoal, mas também a persistência de venezuelanos que continuam acreditando que a mudança pode vir da mobilização não violenta.

Eles não estão errados. A história mostra que regimes autoritários podem ser derrubados sem armas. As pesquisas de Erica Chenoweth e Maria Stephan demonstraram que, quando pelo menos cerca de 3,5% da população nacional participa de mobilizações civis não violentas, as chances de colapso de regimes autocráticos tornam-se elevadas. Foi o que se observou nas Filipinas em 1986, na Sérvia em 2000 e no Nepal em 2006.

No agradecimento pelo Nobel, María Corina Machado afirmou dedicar o prêmio “ao povo sofrido da Venezuela e ao presidente Trump por seu apoio decisivo à nossa causa”. A menção a Trump tende a reduzir a simpatia internacional pela oposição venezuelana entre muitos setores, mas pode ser lida como uma escolha estratégica. Trump desejava para si o Nobel e é um dos principais críticos internacionais de Nicolás Maduro. Em um contexto em que o apoio externo é vital, a fala parece ter como objetivo preservar o apoio dos Estados Unidos à oposição venezuelana.

Governo brasileiro confunde não-interferência com omissão

O Nobel para María Corina Machado também lança luz sobre o silêncio de governos da região, em especial o brasileiro. Ao adotar uma postura discreta, o governo brasileiro confunde não-interferência com omissão. Os princípios da autodeterminação dos povos e da não-interferência não podem servir de escudo para a indiferença diante da repressão sistemática de um povo vizinho. O silêncio, neste caso, é uma forma de conivência.

O Brasil tem autoridade moral e política para agir de modo diferente. Sem romper o diálogo, poderia apoiar de forma mais clara as instituições multilaterais e de direitos humanos que investigam crimes do regime venezuelano, dar visibilidade à causa dos presos políticos e reforçar a legitimidade dos movimentos civis que buscam restaurar a democracia. Poderia ainda desempenhar um papel construtivo na busca de uma transição pacífica.

Um país que passou por sua própria transição democrática nos anos 1980 não deveria aceitar o desmantelamento de regimes democráticos em seu entorno. O Brasil participou ainda da criação e consolidação de normas regionais de defesa da democracia, como o Protocolo de Ushuaia de 1998, assim como a Carta Democrática Interamericana de 2001. Esses instrumentos foram concebidos para evitar retrocessos e criar salvaguardas institucionais contra rupturas autoritárias.

A reação do governo brasileiro à concessão do Nobel a María Corina Machado é, nesse sentido, um teste. Permanecer em silêncio implica alinhar-se, de forma tácita, à lógica da neutralidade complacente. Reconhecer publicamente o significado político e moral do prêmio seria reafirmar que o Brasil continua comprometido com os valores democráticos que moldaram sua própria história recente.

O cenário, contudo, parece ser de continuidade na posição do Brasil. Lula manteve-se em silêncio sobre o Nobel para María Corina Machado. Celso Amorim mostrou-se cético em relação ao prêmio e aos seus possíveis efeitos. Trata-se, ainda assim, de uma posição bastante distinta da adotada no início do governo Lula, que demonstrou apoio público ao governo Maduro.

Trump esboça ações mais agressivas contra o governo Maduro

O silêncio ou complacência são também problemáticos por um fator adicional. A política dos Estados Unidos pode mudar radicalmente em poucos meses: o governo Trump parece disposto a ações mais agressivas contra o governo Maduro. O Brasil corre o risco de perder a capacidade de influenciar os rumos da crise, tornando-se mero espectador de uma nova rodada de tensões regionais e, talvez, de um conflito. Isso colocaria o Brasil em uma posição desfavorável: incapaz de liderar uma resposta regional e empurrado a reagir aos movimentos dos Estados Unidos.

O governo brasileiro precisa, portanto, tomar uma decisão. Pode continuar a apostar no silêncio, e ver outros atores preencherem o vácuo político e moral que o país deixa, ou pode assumir um papel de liderança responsável. O equilíbrio entre prudência diplomática e coerência moral é difícil, mas indispensável para qualquer país que aspire a exercer liderança.

O Nobel concedido a María Corina Machado é um lembrete de que muitos optam pela não violência em resposta à violência. O prêmio, contudo, celebra uma esperança e não uma conquista. E não isenta María Corina Machado de suas contradições. Ela lidera um movimento não violento, mas expressou apoio a Israel e declarou apoio às ações militares recentes dos Estados Unidos no Caribe.

O caminho para uma transição democrática na Venezuela permanece incerto, e a repressão continua. O reconhecimento internacional oferece visibilidade, mas precisa ser acompanhado de pressão diplomática, solidariedade regional e, sobretudo, de um amplo movimento de resistência não violenta na Venezuela.

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