A criação de uma norma geral sobre licenciamento ambiental é uma boa ideia. Mas, com a aprovação do PL 2159 em 17 de julho pela Câmara dos Deputados, a boa ideia saiu pela culatra.
O licenciamento de atividades potencial ou efetivamente poluidoras é um dos mais importantes instrumentos de prevenção de danos ao meio ambiente. Pela magnitude do seu papel, demanda ser regulado por uma lei nacional que estabeleça regras elementares e uniformes para todo o país, a serem complementadas pelos estados e municípios naquilo que for exigido por suas particularidades.
E o que se espera de uma lei geral sobre o licenciamento ambiental? Normas para organizar, racionalizar e fortalecer o licenciamento e o desenvolvimento sustentável de atividades econômicas. O que se vê em boa parte do PL 2159? Normas para proteger o empreendedor contra o licenciamento. Empreender é preciso; empreender com regras ambientais claras e procedimentos licenciatórios mais céleres e eficientes também é preciso. Mas empreender sem ou com reduzido controle ambiental não é preciso, não é devido, não é aceitável.
Segundo Nota Técnica do Observatório do Clima — rede que congrega dezenas de organizações ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais —, dos 66 artigos do PL aprovado, 42 contêm inconstitucionalidades ou retrocessos ambientais, daí o mote Veta Lula.
Fazem coro ao pedido de veto: Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) e inúmeras outras entidades.
O PL 2159 pode ter uma outra qualidade. Mas os seus “defeitos” são tantos e tão graves que mal se pode festejar os seus avanços.
Quais atividades ficam sujeitas ao licenciamento?
O PL segue a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) ao exigir o licenciamento ambiental para a construção, instalação, ampliação e operação de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes de causar degradação ambiental.
Mas essa é uma hipótese geral e ampla, que deve ser preenchida com a indicação das tipologias (natureza, porte e potencial poluidor) dos empreendimentos e atividades que se enquadram neste conceito, para que que haja clareza sobre os projetos cuja implantação dependem das licenças ambientais. Atualmente, esse papel cabe à Resolução Conama 237/1997, norma geral e nacional que lista, de forma exemplificativa, dezenas de obras e atividades sujeitas ao licenciamento ambiental.
O PL 2159 optou por deixar que tipologias sejam estabelecidas pelos entes subnacionais, contrariando a ideia de uniformidade, já que cada estado definirá, com relativa liberdade, quais tipologias representam potencial poluidor e devem ser enquadradas como licenciáveis.
Por mais que se reconheça e valorize a competência concorrente dos estados e municípios para legislar sobre meio ambiente, não nos parece razoável que a norma geral nacional deixe de trazer uma lista de tipologias que, de acordo com o conhecimento científico e as experiências concretas existentes, são consideradas degradadoras em qualquer região do país em que sejam desenvolvidas, a despeito de todas as suas diferenças ambientais, culturais e socioeconômicas. A existência dessa lista evitaria que uma mesma atividade fosse submetida ao licenciamento em um estado e dispensada em outro.
E, pior do que essa omissão, é a previsão de que as tipologias cabem apenas aos entes federativos, impedindo que a tarefa seja feita uma norma nacional (resolução do Conama, por exemplo), o que viola preceitos básicos da competência concorrente constitucional.
Curioso é que, apesar de não prever lista mínima de empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental, o PL não se negou a apresentar uma lista de empreendimentos dispensados do licenciamento, como cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes; pecuária intensiva de pequeno porte; e obras de manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes.
Essa dispensa genérica não leva em consideração características específicas do projeto e pode acabar liberando do licenciamento atividades com potencial degradador, ainda que baixo (para as quais a solução desburocratizadora não é a dispensa, mas o licenciamento simplificado).
Licença Ambiental por Adesão e Compromisso
Outro ponto de destaque do PL 2159 é a já bastante famosa LAC – Licença Ambiental por Adesão e Compromisso, uma espécie de autolicenciamento: o empreendedor obtém essa licença de forma imediata, ao informar características e dados técnicos sobre o empreendimento (que poderão ser analisados pela autoridade licenciadora por amostragem) e assumir o compromisso de cumprir os requisitos preestabelecidos pelo órgão licenciador para o tipo de atividade desejada.
Trata-se de um licenciamento simplificado para empreendimentos de baixo potencial poluidor, quando forem conhecidos os impactos ambientais da tipologia do projeto e da região em que ele será implantado, possibilitando que o órgão ambiental estabeleça os requisitos de instalação e funcionamento sem necessidade de novos estudos e sem avaliar as particularidades de cada empreendimento. Até o presente momento a LAC é prevista apenas em normas estaduais, como da Bahia, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Ceará. Depois de muitos embates, inclusive judiciais, alcançou-se o consenso científico e jurídico de que a LAC para empreendimentos de baixo potencial poluidor é justificável, pois ela desafoga os órgãos ambientais. Desafogados, eles podem se dedicar de forma mais eficiente à análise de projetos de maior impacto. O próprio STF já decidiu pela constitucionalidade desta modalidade de licença.
Com o cenário favorável à LAC para projetos de baixo potencial poluidor, os parlamentares decidiram esticar a corda e estender a LAC para empreendimentos de médio potencial poluidor. Afinal, conforme a frase motivacional “o não eu já tenho”, sempre vale a pena ousar para se conseguir o que se deseja – no caso, o autolicenciamento para um leque maior de atividades.
Contudo, se o STF mantiver seus recentes posicionamentos sobre o tema, a LAC para atividades de médio potencial poluidor não sobreviverá. Na ADI 6808, o STF pôs fim ao licenciamento ambiental automático, via REDESIM, para projetos de médio risco, conforme previsto na Lei 14.195/2021. Segundo a relatora, Ministra Carmen Lúcia, “a concessão de licença para atividade empresarial com risco médio da atividade e com controle apenas posterior afronta, exemplarmente, o princípio da prevenção e também o da precaução. O dano pode se tornar irreversível por não se poder acudir ao que tenha sido lesado em termos ambientais”.
Licenciamento ambiental “especial”
O PL prevê ainda uma Licença Ambiental Especial (LAE) para empreendimentos estratégicos, definidos como tais em decreto do presidente da República, mediante proposta do Conselho de Governo. A depender das pressões políticas da ocasião, isso pode levar à aprovação de uma longa lista de projetos estratégicos.
Para dar celeridade a este licenciamento, ele será monofásico (uma única licença, a LAE), mesmo que o projeto seja causador de significativa degradação ambiental e esteja sujeito ao Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). O licenciamento deverá ser concluído em 12 meses e terá prioridade sobre os demais licenciamentos em trâmite no órgão ambiental.
A LAE revela o esforço do PL 2159 em enfraquecer o licenciamento ambiental: de um lado, aumenta-se o espectro de empreendimentos sujeitos ao autolicenciamento (LAC) e, de outro, busca-se simplificar o licenciamento dos poucos empreendimentos que ficaram sujeitos ao licenciamento regular.
Mata Atlântica
Sobrou até para a Mata Atlântica, um dos mais ricos e ameaçados biomas do Brasil: o PL revoga trechos da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/06), de forma a facilitar e acelerar a autorização de supressão de vegetação primária e secundária nos estágios avançado e médio de regeneração, nos casos de utilidade pública ou interesse social.
Atualmente, essa supressão deve ser autorizada pelo órgão ambiental estadual e ter a anuência prévia do órgão federal. Em caso de supressão de vegetação em área urbana, deve ser autorizada pelo órgão municipal (apenas se ele tiver conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor) e ter a anuência prévia do órgão estadual. O chamado duplo controle é uma forma de redobrar a cautela e, assim, garantir a excepcionalidade das autorizações de supressão, o que é justificável, considerando o grau de vulnerabilidade desse patrimônio nacional.
Se o PL for sancionado como aprovado na Câmara, a supressão de Mata Atlântica se dará conforme a regra geral da Lei complementar 140/2011: “a supressão de vegetação decorrente de licenciamentos ambientais é autorizada pelo ente federativo licenciador” (art. 13, §2º). Significa dizer que a decisão sobre supressão algumas vezes caberá individualmente ao Ibama, outras ao órgão estadual, outras ainda aos municípios licenciadores. Ou seja, faz todo sentido o receio de que o PL resulte em aumento do desmatamento “legal” na Mata Atlântica.
Leis que nascem nesse ambiente tão conturbado têm destino certo e sabido: ações direta de inconstitucionalidade no STF e anos de insegurança jurídica e de riscos de danos ambientais graves e/ou irreversíveis até a decisão final. Está fresco na memória o que aconteceu com o Código Florestal de 2012, objeto de quatro ações direta de inconstitucionalidade e uma ação declaratória de constitucionalidade, julgadas entre 2018 e 2024 após longo período de incertezas e de resistência ao cumprimento e à aplicação da lei.
O licenciamento ambiental não merecia essa mesma sina…