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O que é preciso para que a nova lei de proteção digital a crianças e adolescentes gere o impacto necessário?

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O que é preciso para que a nova lei de proteção digital a crianças e adolescentes gere o impacto necessário?

O novo Estatuto da Criança e do Adolescente Digital, sancionado em setembro deste ano e conhecido como ECA Digital (Lei nº 15.211/2025), representa um marco decisivo para a proteção das crianças brasileiras na era digital. Trata-se, no entanto, de uma conquista incompleta. Toda nova lei é uma promessa, cuja efetividade dependerá das ações práticas implementadas daqui em diante. E o que está em jogo é o futuro emocional, social e psicológico de toda uma geração.

O Brasil reúne números que exigem ações urgentes. Em 2023, batemos um triste recorde: a organização SaferNet recebeu 71.867 denúncias de imagens de abuso sexual infantil online, um aumento alarmante de 77% em relação ao ano anterior (Figura 1). Esses números revelam uma grave vulnerabilidade associada à alta exposição das crianças à internet sem supervisão adequada.

De acordo com dados do TIC Kids Online Brasil (2023), atualmente, 96% das crianças e adolescentes brasileiros acessam a internet diariamente, e cerca de 34% navegam em ambientes privados, ou seja, longe dos olhos de seus responsáveis. Esta combinação de amplo acesso e baixa supervisão amplia significativamente os riscos relacionados à exposição precoce a conteúdos prejudiciais e tentativas de exploração e aliciamento sexual online.

A violência sexual, contudo, não está restrita ao meio digital. Em 2024, o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou 87.545 casos de estupro e estupro de vulnerável; desse total, 61,3% das vítimas tinham até 13 anos (Figura 2). Esses dados também estão relacionados à vulnerabilidade ampliada pelas plataformas digitais, que frequentemente são utilizadas como canal inicial para o aliciamento, manipulação psicológica e exposição a conteúdos que incentivam ou normalizam abusos.

Esses crimes, predominantemente cometidos no ambiente doméstico (65,7%) por familiares próximos (45,5%), representam uma vulnerabilidade que pode ser ampliada pela exposição descontrolada e precoce a conteúdos inadequados e pelo uso privado de dispositivos digitais por crianças e adolescentes. Esse cenário torna mais difícil para responsáveis identificar comportamentos de risco ou tentativas de aliciamento.

Impactos na vida escolar e saúde mental

Além disso, o impacto negativo do ambiente digital pouco regulado também aparece em indicadores críticos de saúde mental. Em 2021, o suicídio foi a 3ª causa de morte entre adolescentes brasileiros (15 a 19 anos), com taxas alarmantes de 9,3 por 100 mil entre meninos e 4,5 entre meninas (Figura 3).

Estudos internacionais renomados, como o publicado pelo JAMA Network Open (2025) e o relatório do U.S. Surgeon General (2023), demonstram que o uso excessivo das redes sociais (mais de três horas diárias) aumenta significativamente a ocorrência de sintomas depressivos, ansiedade e pensamentos suicidas entre adolescentes. O cenário se agrava com a prevalência do cyberbullying, que atinge 13,2% dos adolescentes brasileiros, segundo a pesquisa PeNSE (IBGE, 2019).

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A vida escolar também é diretamente afetada pelo uso inadequado de dispositivos digitais. O relatório da OCDE (PISA 2022) indica que alunos constantemente distraídos por dispositivos eletrônicos têm desempenho acadêmico significativamente inferior, principalmente em Matemática.

Não estamos enfrentando apenas crises individuais ou isoladas, mas um problema amplo, envolvendo falhas estruturais nos ambientes digitais, nas regras que regulam a internet e na cultura de uso das tecnologias. Plataformas digitais, como redes sociais, vídeos e jogos, são desenhadas para maximizar o tempo e a atenção dos usuários, pois assim geram lucro. Contudo, essa lógica contraria o desenvolvimento saudável das crianças, cujo cérebro em formação é extremamente vulnerável a estímulos excessivos e prolongados.

A Lei 15.211/2025 (ECA Digital) foi criada justamente para alterar essa lógica, estabelecendo regras claras para proteção das crianças no ambiente digital. Ela determina que plataformas digitais façam uma verificação confiável da idade dos usuários, ofereçam mecanismos de supervisão parental já ativados por padrão, e removam rapidamente conteúdos perigosos, como abuso sexual infantil e materiais que possam induzir automutilação ou suicídio. Além disso, a lei proíbe práticas comerciais nocivas, como as chamadas caixas de recompensas (que simulam apostas em jogos) e impede que plataformas lucrem com conteúdos que desrespeitem os direitos da infância.

Mas leis como essa, por mais importantes que sejam, não garantem por si só as mudanças necessárias. Para proteger efetivamente as crianças e adolescentes, é preciso um esforço coordenado e contínuo que envolva não só a criação de leis, mas também a implementação de tecnologias apropriadas, uma fiscalização rigorosa e a construção de uma cultura digital mais responsável em todos os setores da sociedade.

Transformar a lei em realidade: o que precisa acontecer agora

Para que a ECA Digital se torne efetivamente uma realidade, será necessário agir em múltiplas frentes de maneira coordenada. A primeira frente de ação é investir no fortalecimento da infraestrutura de monitoramento e fiscalização. Nesse campo, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), agora elevada a agência reguladora, terá um papel fundamental na implementação da nova lei.

Cabe à ANPD estabelecer regras claras, com prazos bem definidos, critérios técnicos objetivos e métricas transparentes que possam ser facilmente acompanhadas pela população, tais como:

  • Tempo médio de remoção de conteúdos relacionados a abuso sexual infantil;
  • Taxa de resolução de denúncias de assédio e cyberbullying;
  • Percentual de contas infantis com controles parentais já ativos
  • Frequência de recursos prejudiciais, como notificações noturnas ou vídeos em reprodução automática.

Medidas como estas facilitam a fiscalização pública, garantindo que a lei se torne um instrumento efetivo de proteção.

Uma segunda frente é a mobilização e participação ativa da sociedade civil e filantropia. Uma proposta estratégica seria criar um Observatório independente para monitorar o cumprimento do ECA Digital.

Embora não exista atualmente, essa estrutura pode ser estabelecida rapidamente por meio da cooperação entre universidades, ONGs e think tanks especializados. Tal iniciativa ajudaria na fiscalização, promoveria transparência e apoiaria escolas e famílias com orientações práticas para o uso saudável das tecnologias.

O terceiro núcleo de ação é o papel das escolas e setor educacional. Recentemente, foi aprovada a Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos portáteis pelos estudantes da educação infantil, ensino fundamental e médio durante aulas, recreios e intervalos, nas escolas públicas e privadas.

Essa medida já reflete uma resposta concreta à preocupação com os efeitos negativos do uso excessivo de telas no desempenho, na concentração e na saúde mental dos jovens, e exige implementar ambientes educativos que priorizem concentração e minimizem distrações.

Mas, para além dessa proibição, é fundamental capacitar professores para uso pedagógico adequado das tecnologias digitais e identificação precoce de sofrimento emocional relacionado ao uso excessivo de telas, assim como criar espaços para acolhimento e escuta de estudantes em sofrimento emocional.

Infância protegida é condição de transição justa

Se queremos que as mudanças trazidas pela tecnologia sejam positivas, é preciso proteger especialmente as crianças, grupo mais vulnerável aos efeitos negativos dessas rápidas transformações. O sucesso do ECA Digital depende, portanto, de uma fiscalização rigorosa, do acompanhamento permanente pela sociedade civil e da responsabilidade efetiva das plataformas digitais.

Nenhuma mudança tecnológica ou digital será justa ou bem-sucedida se colocar em risco o desenvolvimento saudável e seguro das futuras gerações. O futuro das crianças brasileiras não pode depender apenas de algoritmos voltados ao lucro. A hora de agir é agora — com urgência e compromisso.

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