Um dos maiores desafios socioeconômicos do século XXI é o envelhecimento da população. O mundo inteiro envelhece, apenas se diferenciando no ritmo em cada país. A transição demográfica ocorre sobreposta a outras transições tão desafiadoras quanto: a ambiental, a epidemiológica e a digital, sendo a populacional um pano de fundo para todas as outras. Essas transições são as incubadoras da “policrise”, na definição do pensador Egard Morin, com impactos na estrutura social e ameaças na governança e na sobrevivência saudável das democracias.
Esse quadro deveria ser mais do que suficiente para os governantes responsáveis concentrarem seus esforços em ações efetivas para enfrentar a concentração de renda, desdobramento natural do envelhecimento da população. Produtividade, herança e custos de cuidado de longa duração demandam medidas anticíclicas que deveriam ser constantemente recalibradas, sobretudo com um sistema tributário progressivo (imposto sobre fortunas). O envelhecimento da população é também uma fonte de geração de riqueza, desde que acompanhado de iniciativas inovadoras e estratégicas.
No entanto, o mundo caminha para o sentido inverso e a colheita do plantio de sementes podres tem sido o crescimento do risco de empobrecimento da população idosa. Dito de outra maneira: além das novas gerações terem poucas chances de reproduzir o status financeiro e o bem-estar das gerações anteriores, seus avós e pais estão empobrecendo e com menos condições de promover uma transferência intergeracional de renda e/ou patrimônio, salvo os muito ricos, bilionários e afins.
Aquele discurso de que sistemas previdenciários de repartição construídos no pós-guerra eram “generosos” e deveriam ser restringidos, agora começa a cobrar o seu preço. Em grande parte da Europa, no Japão, nos Estados Unidos, no Canadá, o tema do empobrecimento na velhice está na agenda parelho – um paradoxo – com a discussão de novas reformas previdenciárias.
Faixa etária de idosos dependentes está baixando na França
A França é um bom exemplo. Enquanto o governo discute regras mais rígidas e nova ampliação da idade de aposentadoria, também coloca na mesa a questão da pobreza das pessoas idosas. Em abril, a Inspection Generale des Affairs Sociales (Igas), órgão interministerial, divulgou um edital convocando pesquisadores para elaborar um estudo sobre envelhecimento e pobreza. O que chama a atenção é o quanto a pobreza vem antecipando a idade de dependência. Segundo o Igas, a proporção de pessoas com mais de 50 anos em situação de vulnerabilidade, precariedade ou pobreza acolhidas em lares de idosos e residências para aposentados é de 13%, enquanto chega a 55% em residências sociais.
No fim do ano passado, a organização social Petis Frères de Pauvres divulgou relatório específico sobre envelhecimento e pobreza, dando conta de que “o número de idosos pobres está aumentando e suas condições de vida estão se deteriorando”. O parâmetro adotado é o de 60 anos, como nos países pobres, e não o de 65 anos, estipulado para os países ricos. O número de idosos pobres, dentro dos padrões do Banco Mundial (na França, abaixo de 1.200 euros/mês), é estimado em dois milhões de pessoas ou 2,9% da população francesa. É um nível muito alto para um país do G7.
Outra organização, a Secours Catholique, que elabora um relatório anual sobre pobreza há três décadas, constata desde 2023 um agravamento e queda do padrão de vida de 7,6%. Isso significa viver com 538 euros por mês ou 18 euros por dia – menos da metade da linha de pobreza.
No mesmo ano, o Restos du Cœur, distribuidores de alimentos para os pobres, constatou um aumento de 18% no número de pessoas acolhidas. O Banque de France, por sua vez, divulgou relatório específico sobre endividamento das pessoas idosas constatando que o percentual de endividados cresce acima da participação desse grupo etário no total da população. As pessoas idosas endividadas representavam um pouco mais de 12% em 2020 contra 6,8% em 2012, com grande desvantagem para as mulheres idosas.
Rompimento de Trump com OTAN contribuirá com empobrecimento na Europa
Nos Estados Unidos, o empobrecimento já foi muito bem constatado por trabalho do prêmio Nobel Angus Deaton e de Anne Case sobre o que eles chamaram de “mortes por desespero” e seus efeitos sobre a queda na expectativa de vida dos norte-americanos. O problema é que o empobrecimento das pessoas idosas vai se agravar devido à atuação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Seu rompimento unilateral com o pacto militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) lembra a atitude de Richard Nixon, em 1971, quando saiu do sistema monetário mundial construído em Bretton Woods no pós II guerra ao elevar as taxas de juros norte-americanas e romper com o câmbio fixo para remediar os erros do país na guerra do Vietnã.
A decisão de Trump, agora, obrigou os países europeus a aumentarem em níveis inéditos os gastos militares. Os recursos anunciados pela União Europeia de 800 bilhões de euros para a defesa estão saindo de programas de saúde, educação e combate à pobreza que ampliarão o risco de vulnerabilidade das pessoas idosas em todo o planeta, uma vez que atingem também transferências para programas humanitários internacionais. Um dos pontos mais sensíveis é a questão habitacional.
No Brasil, intromissão Trumpista prejudicará investimentos
Além da saída do pacto da Otan, a guerra de tarifas de Trump também se constitui um fator de ampliação da vulnerabilidade das pessoas idosas no planeta. O protecionismo trumpista, agora declaradamente para defender Jair Bolsonaro de um julgamento por tentativa de golpe de Estado, tem o efeito imediato de restringir investimentos, provocar desemprego e gerar inflação. Nada pior para a pobreza.
No entanto, é preciso ficar atento porque, como nos ensinou o sociólogo Lúcio Kowarick, existe uma lógica da ordem na desordem aparente para o sucesso da espoliação em uma economia cada vez mais financeirizada. O aumento da pobreza das pessoas idosas as joga na roda das dívidas para servir à expropriação de mais juros.
Novamente a França como exemplo: o governo lançou um fundo de investimento para os franceses ajudarem no financiamento do setor de defesa. Ou seja, a poupança para a velhice e os investimentos privados são desviados de ações sociais para o setor militar. Os clientes alvo são as pessoas idosas e aqueles em vias de aposentadoria. O mínimo a investir é baixo: 500 euros.
A princípio, o fundo será administrado pelo BpiFrance (uma espécie de BNDES francês), mas sabemos que esses recursos uma vez introduzidos na esfera financeira sempre irão beneficiar mais o país líder nesse segmento porque logo uma ação vascular os faz chegar ao mercado de fundos norte-americanos. A taxa de rentabilidade ainda não foi divulgada, mas é legítimo concluir que nessa geopolítica do envelhecimento o ganhador já é conhecido.