Poucas provocações políticas se espalharam tão rápido quanto o rótulo ‘socialista de iPhone’. A expressão, usada por setores da direita, busca identificar uma suposta contradição: como alguém que defende um Estado desenvolvimentista, com políticas redistributivas e direitos sociais, pode usar um produto-símbolo do capitalismo global, como o iPhone?
O ataque funciona porque se apoia num senso comum poderoso: a ideia de que toda inovação relevante nasce espontaneamente do “gênio da garagem” (esse sim é o verdadeiro mito) ou do empreendedor capitalista, e que o Estado só atrapalha, nada produz, ou regula demais. Porém, quando olhamos para a história e antropologia da tecnologia, essa crítica cai por terra.
A ironia é que o verdadeiro paradoxo não está no “socialista de iPhone”. Está no capitalista que usa produtos profundamente financiados, concebidos e viabilizados pelo Estado, enquanto nega o papel crucial do setor público ao longo de toda a cadeia de inovação.
E poucos trabalhos explicam isso tão bem quanto o de Mariana Mazzucato, economista que demonstra que o iPhone, talvez o objeto mais icônico do capitalismo contemporâneo, só existe porque o Estado, mais precisamente o Estado dos Estados Unidos, assumiu riscos que o setor privado jamais aceitaria.
iPhone nasceu da inovação estatal, não de um gênio na garagem
Segundo Mazzucato, o iPhone não foi desenvolvido a partir de uma única bolsa governamental. Ele é o resultado de décadas de investimentos públicos massivos, de altíssimo risco, que pavimentaram o caminho para que a Apple pudesse simplesmente integrar tecnologias já maduras.
Veja algumas das inovações estatais presentes no aparelho:
Internet e protocolos de comunicação: sem o DARPA, o NSF e o desenvolvimento estatal de protocolos como TCP/IP, não haveria Internet para o iPhone se conectar;
GPS: Criado pelo Departamento de Defesa dos EUA nos anos 1970 e mantido pela Força Aérea até hoje;
SIRI: Derivada de um projeto de IA financiado pela DARPA, envolvendo 20 universidades americanas;
Tela multi-touch (touchscreen): Fruto de pesquisas financiadas pela NSF e pela CIA/DCI em universidades públicas;
Microprocessadores: impulsionados pela compra governamental via programas militares, como o Minuteman II e o programa Apollo da NASA;
LCD: Desenvolvido com financiamento massivo do Exército americano e mais tarde da DARPA;
Baterias de íon-lítio: Pesquisas fundadoras financiadas pelo Departamento de Energia e pela NSF.
Nada disso veio de venture capital. Nada disso surgiu porque “o mercado quis”. O setor privado só se interessou depois que o Estado bancou o risco, reduziu as incertezas e criou um ambiente tecnológico viável.
Mazzucato mostra que a própria Apple foi beneficiada por políticas públicas. A empresa recebeu US$ 500 mil em investimento semente por meio do SBIC, programa federal da Small Business Administration, além de contar com o sistema público de educação como comprador estratégico nos anos 1990, período em que enfrentava dificuldades e buscava estabilidade. Ou seja, seguindo a lógica dos críticos, o contraditório não seria o “socialista de iPhone”, mas sim o “capitalista de Apple subsidiada pelo governo”.
E isso não se resume apenas ao iPhone. As vacinas de mRNA, celebradas como triunfo da biotecnologia moderna, também são fruto direto de décadas de investimento estatal. Apenas nos 30 anos anteriores à pandemia, o governo dos Estados Unidos investiu US$ 31,9 bilhões em pesquisas que permitiram o desenvolvimento das vacinas de mRNA contra a covid-19, dos quais US$ 337 milhões foram aplicados antes mesmo da crise sanitária. Mais uma vez, o setor público assumiu os riscos e construiu as bases científicas que o mercado só pôde aproveitar quando a tecnologia já estava madura.
Essa lógica, em que o Estado financia e o setor privado colhe os louros, também se observa nos casos frequentemente celebrados como símbolos da “inovação privada”. Se existe uma marca elevada a esse status, é a Tesla. Mas os dados contam outra história. A Tesla e outras empresas de Elon Musk receberam pelo menos US$ 38 bilhões em contratos, empréstimos e incentivos governamentais.
A Tesla só existe graças a um empréstimo estatal
Em 2010, a empresa de Elon Musk recebeu US$ 465 milhões do Departamento de Energia dos Estados Unidos, um empréstimo decisivo para viabilizar a produção do Model S e a compra da fábrica da Tesla na Califórnia. Um ex-executivo chegou a afirmar que “a Tesla não teria sobrevivido sem esse empréstimo”, revelando o papel central do Estado naquele momento crítico.
A dependência, porém, não parou aí. Desde 2014, a Tesla faturou US$ 11,4 bilhões vendendo créditos regulatórios emitidos por leis ambientais – um mecanismo estatal concebido para incentivar a transição para veículos menos poluentes. Em 2020, esses créditos foram tão importantes que, sem eles, a empresa teria registrado prejuízo. Além disso, a Tesla ainda se beneficiou de generosos incentivos estaduais: recebeu US$ 1,3 bilhão para construir a gigafábrica em Nevada e acumulou bilhões em benefícios concedidos pela Califórnia ao longo dos anos.
Ou seja, mesmo o exemplo mais idolatrado de “inovação privada” dependeu profundamente do Estado para existir, crescer e se consolidar como gigante do setor.
SpaceX só decolou por causa da NASA e do Departamento de Defesa
Os primeiros contratos da SpaceX vieram justamente de onde os críticos menos gostam de admitir: do próprio governo americano. Já em 2003, a DARPA e o Departamento de Defesa começaram a financiar a empresa por meio de pagamentos para projetos de destaque. Em 2006, o governo comprou o primeiro lançamento do Falcon 1, que explodiu 58 segundos após o lançamento. Ainda assim, o Estado insistiu e continuou a apoiar a empresa em seus passos iniciais.
A relação se aprofundou quando a NASA passou a desempenhar um papel central no crescimento da SpaceX. Mesmo antes de qualquer sucesso consistente, a agência já havia desembolsado centenas de milhões de dólares em contratos de desenvolvimento, tolerando atrasos de até dois anos. Só alguns meses depois do primeiro voo bem-sucedido, a NASA assinou um contrato de US$ 1,6 bilhão, consolidando a SpaceX como fornecedora estratégica para reabastecer a Estação Espacial Internacional.
O surgimento do Starlink seguiu uma lógica semelhante. Embora hoje gere receita própria, o sistema foi impulsionado por lançamentos bancados pelo governo, por contratos de fornecimento de internet para agências federais e até por acordos classificados de defesa, incluindo um contrato de US$ 1,8 bilhão para satélites militares. Não à toa, a própria presidente da SpaceX admitiu: “A empresa provavelmente estaria mancando sem o financiamento inicial da NASA.”
No fim, o que exatamente a direita não entendeu?
A crítica do “socialista de iPhone” revela menos sobre socialismo e muito mais sobre o desconhecimento de como a inovação realmente acontece. Quando observamos a trajetória das tecnologias que moldam o mundo contemporâneo, três pontos se tornam evidentes. Primeiro, o Estado não é inimigo da inovação. Ele é, na verdade, seu motor mais profundo. A lógica do lucro não financia ciência básica nem tecnologias de alto risco; quem assume esses riscos é o setor público, justamente porque seu objetivo não é retorno imediato, mas o desenvolvimento de capacidades estratégicas de longo prazo.
Segundo, enquanto o Estado investe e assume as incertezas, o setor privado frequentemente privatiza os lucros que só existem graças a décadas de pesquisa pública. Quem financiou a Internet, o GPS, os foguetes da SpaceX ou os carros elétricos da Tesla? Os contribuintes.
Por fim, usar um iPhone não contraria ideias progressistas, ao contrário. Significa reconhecer o valor da ciência pública, da política industrial e da aposta estatal que permite que tecnologias amadureçam antes de serem apropriadas pelo mercado. Se existe um paradoxo nessa história, é justamente o oposto do argumento comum: a contradição não está em quem defende o Estado e usa um iPhone; está em quem defende o livre mercado enquanto prospera graças a tecnologias financiadas pelo Estado.





