Por séculos, a humanidade viu no mar um espaço desafiador, infinito e repleto de mistérios. Essa visão potencializou a vontade do ser humano de explorar esse espaço através de embarcações cada vez mais desenvolvidas e capazes de chegar onde antes era inimaginável. Com o passar dos anos, o espaço marítimo passou a ser pautado por políticas governamentais sobre como dividi-lo entre os países costeiros, quais rotas comerciais seriam mais eficientes, e também como explorar os recursos naturais que antes eram inacessíveis.
Avaliando esses pontos, existem aqueles que dizem que o mar deve ser um ambiente livre para que todos possam navegar de um país para o outro, explorando a diversidade de recursos que o planeta Terra tem a oferecer – quase que de maneira bíblica.
Por outro lado, há também aqueles que dizem que o mar, assim como as ondas, é um espaço desordenado, não tendo a estabilidade fornecida pela terra firme.
O ponto é que fazer um debate sobre essas duas visões pode desafiar a própria noção humana sobre o que é “o mar”. No cinema e na literatura, são comuns as histórias onde o mar é visto como uma saída – um lugar desconectado do mundo que serve como local de fuga quando as coisas em terra firme não saem como esperado.
Essa romantização do mar, por mais poética que seja, mostra que a relação do ser humano com os espaços terrestre e marítimo pode ser bem variada a depender de quem é o sujeito na história.
O mar no contexto internacional
Apesar de existirem pessoas que acreditam que o planeta Terra não é redondo, não é surpresa para ninguém que ele é quase completamente composto por água. Por muito tempo, era impossível explorar a imensidão azul no horizonte. Só com o aumento da tecnologia e do conhecimento humano, desbravar o mar passou a ser uma realidade mais próxima.
No meio disso, é natural que os pontos de referência dos antigos capitães de navio fossem a terra firme. Afinal, é dela que todos os navios partem e é nela que todos eles também chegam. Mas isso por si só não explica o motivo de, até hoje, tudo que pensamos sobre o mar parte de uma perspectiva terrestre.
O melhor exemplo disso é a própria denominação das fronteiras marítimas pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, (UNCLOS), que traça suas linhas de divisão entre mar territorial (águas unicamente de um país), zona econômica exclusiva (apenas aquele país pode explorar os recursos marítimos, como pesca, petróleo e afins) e águas internacionais (zonas marítimas livres) partindo da faixa de terra de determinado país.
O que torna isso no mínimo curioso é que a terra firme pode ser medida em apenas duas dimensões: altura e largura. Nesse caso, é até possível considerar a terceira dimensão (profundidade) ao se pensar no subsolo. Contudo, sendo algo contraintuitivo da humanidade (cavar para se locomover), a terra firme não é pensada para além da largura do território até a altura das montanhas.
Seguindo a visão do mar como um espaço desordenado, pode-se dizer que a UNCLOS tentou ordená-lo no mapa mundial da mesma forma que fronteiras terrestres são traçadas. Ou seja, existem os limites territoriais marítimos determinados pelas duas primeiras dimensões, mas o que fazer quando se há a terceira em jogo?
A “ontologia molhada”
Diferente da terra, o mar carrega características que funcionam apenas na terceira dimensão: profundidade, volume, fluidez e liquidez são algumas das variáveis que alguns pesquisadores pensaram para criar o conceito de “ontologia molhada”, uma abordagem diferente da tradicional em relação ao mar.
Se as ondas do oceano não fornecem a mesma estabilidade da terra firme, por que então tentar enquadrá-las nas mesmas categorias? É justamente por isso que a ontologia molhada tenta reimaginar um mundoem constante movimento.
Há muito mais nas ondas do que só ondas, afinal, elas podem ser calmas ou severas, com maior ou menor intensidade. Tudo depende da direção e força do vento – outra coisa que a humanidade também é incapaz de mensurar seguindo apenas conceitos terrestres.
A própria mudança constante na forma da água mostra que ela é algo impossível de ser padronizado da mesma maneira que a terra firme. Ao considerar ainda a sua fluidez e como correntes marítimas funcionam no planeta, a equação fica cada vez mais interessante: a humanidade até pode tentar criar fronteiras no mar baseadas em perspectivas terrestres, mas ninguém vai conseguir mudar a forma como o planeta funciona, muito menos como a vida marinha é distribuída, afinal o cardume de peixes jamais vai saber se está dentro de uma zona econômica exclusiva ou em águas internacionais.
Por conta disso, essa espacialidade líquida e em constante mudança não deveria ser vista a partir de um “navio”, mas sim de um “submarino”, já que antes só era possível ir para frente e para trás, ou para um lado e para o outro. Agora, além disso, também é possível ir para cima e para baixo.
As formas da água, e o que isso significa para o futuro
E se fosse possível expandir ainda mais a equação do mar? E se fosse possível pensar a água em suas diferentes materialidades?
Como todos já sabem, a água também pode aparecer (ou desaparecer) em forma sólida e gasosa. Então, se a água do mar evapora para as nuvens e as nuvens fazem chover a água líquida em terra, pode-se dizer que o ciclo da água no mundo passa por todos os lugares. Mas o que dizer sobre a forma sólida? O que o gelo polar do planeta faria na equação?
Dadas as mudanças climáticas, já é de conhecimento geral que grandes camadas de gelo estão derretendo, o que acaba aumentando o nível do mar e oferecendo um risco a longo prazo para comunidades e cidades costeiras, além de ilhas e arquipélagos estatais.
A incógnita dessa equação aquática fica justamente nesse ponto: o que fazer com as fronteiras marítimas se o referencial de partida delas for alterado? A resposta mais simples seria apenas refazer as distâncias e atualizar a fronteira. Entretanto, na política global, dificilmente algum país simplesmente aceitaria perder o território que antes era seu por direito.
Talvez os únicos beneficiados pelo derretimento seriam aqueles que de fato perdem território marítimo por conta do gelo. Países próximos aos polos terrestres, como Argentina, Canadá, Rússia, Islândia e Noruega, poderiam frequentemente atualizar as suas fronteiras marítimas para expansão de suas zonas econômicas exclusivas.
Mas, seguindo o argumento de que o mar é um bem comum da humanidade, poderiam apenas alguns poucos países se beneficiarem de uma situação que será problemática para os demais?
É justamente por questões como essa que a ontologia molhada se faz necessária. Desafiar e contestar a visão tradicional e as formas como o mar é considerado pela humanidade pode abrir novas possibilidades sobre a importância dos mares.
Sendo assim, pode-se dizer que a equação (ainda) não tem resposta. Mas assim como as ondas, ela também está em constante mudança.