A última sessão da Assembleia Geral da ONU, que ocorreu semana passada em Nova York, marcou o antagonismo entre a postura unilateral norte-americana, o apelo por cooperação das potências europeias e a cobrança de reformas que deem maior representatividade à organização, feita pelos países do Sul Global. Mas também representou um marco histórico. Neste ano de 2025, a ONU completa 80 anos de existência.
Esse aniversário abre espaço para uma reflexão sobre o futuro da organização e sua efetividade no atual contexto global, marcado por crescente disputas e competição entre os principais atores internacionais. Os desafios envolvem conflitos internacionais que violam importantes princípios do direito internacional, como a soberania dos países e os direitos humanos, a mudança climática, e a persistência do subdesenvolvimento. Todos eles são conflitantes com os princípios que motivaram a criação da ONU: a promoção da paz, da cooperação e do desenvolvimento.
Em seu discurso de abertura, o Secretário Geral, António Guterres, resgatou os princípios que levaram à criação da ONU. Reafirmou o seu dever como guardiã do Direito Internacional e de promover a ordem internacional sustentada pelo respeito às leis e à cooperação. Para ele, hoje vivemos a volta da lógica do poder triunfando sobre a lógica do Direito e das leis. Países desrespeitam as normas internacionais como se estas regras não fossem aplicáveis a eles.
Crise do multilateralismo
A crise da ONU é um reflexo do contexto mais amplo da política internacional. Há uma perceptível redistribuição de poder resultante da ascensão de países emergentes, sobretudo a China, e a redução relativa do poder norte-americano e europeu. Guterres reforçou que novas potências têm ganhado relevância, o que torna o contexto internacional contemporâneo cada vez mais multilateral. Alertou que, no período da Segunda Guerra Mundial, a distribuição de poder também era multipolar, mas a ausência de instâncias de cooperação multilateral levou à Guerra.
A ONU foi criada em 1945, em São Francisco, ao fim da Segunda Guerra Mundial, em um cenário em que a distribuição de poder era diferente. Essa condição foi refletida na construção da organização, em especial na estrutura do Conselho de Segurança. Naquele momento, os Estados Unidos eram a potência dominante em termos políticos, econômicos e militares de forma inquestionável. A assimetria permitiu ao país liderar a construção da ordem internacional no pós-Guerra, refletindo princípios liberais. Entre eles estavam o respeito às regras e instituições, valorização da diplomacia e da cooperação como formas de manter a paz e a estabilidade globais.
Mas a distribuição de capacidades de poder na política internacional não é estática. Ao longo desses 80 anos, mudou. Em momentos de redistribuição de poder, a ordem internacional passa a ser questionada. Cria-se um descompasso entre as estruturas existentes, que refletem a distribuição anterior. Os atores emergentes buscam maior influência, que corresponda às suas capacidades de poder adquiridas. Esse é o contexto internacional atual e a crescente percepção de ineficiência das organizações internacionais é sintoma dessa dinâmica. Não à toa, disputas de poder e por zonas de influência tornaram-se o principal tom da política internacional contemporânea.
Divergências nos discursos
Ao olhar para os discursos proferidos pelos chefes de Estado na Assembleia Geral da ONU, vemos duas tendências importantes. Potências europeias, como a França, conclamam pela cooperação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e pelo fortalecimento da ONU. Já a principal liderança responsável pela criação da organização, os Estados Unidos, se mostram cada vez mais céticos. Orientados a agir de forma unilateral, os EUA buscam assegurar a preponderância de poder do país nesse contexto tumultuado.
Enquanto isso, lideranças do sul Global, como o Brasil, defendem a reforma da organização. Pedem para que se torne mais representativa, com maior poder de voz aos países em desenvolvimento – sobretudo no Conselho de Segurança da ONU –, a fim de refletir o cenário cada vez mais multilateral da política internacional.
Esse cenário traz problemas complexos para a ONU e para outras organizações internacionais. Na lógica da disputa de poder, o respeito ao Direito se torna secundário e o uso da força uma possibilidade iminente. Diplomacia e cooperação são trocadas pela coerção e há uma crescente fragmentação da política internacional entre zonas de influência das potências que estão no centro do jogo. Portanto, Guterres ressaltou a importância do multilateralismo e de espaços de negociação para a promoção da cooperação, sobretudo em um momento de redistribuição de poder e contestação da ordem internacional vigente.
Escolhas para o futuro
O grande desafio que se coloca à ONU é manter-se relevante e assegurar o respeito ao Direito Internacional no contexto do retorno à lógica da política de poder. Contudo, ela é uma organização feita por seus países-membros. Portanto, o Secretário Geral Guterres coloca essa responsabilidade nas escolhas dos países que fazem parte da organização, sobretudo das principais potências econômicas e militares.
Guterres conclamou os países membros a fazerem cinco escolhas para retomar um sistema internacional pacífico, estável e próspero: A primeira é pela construção de uma paz baseada no Direito e no respeito às leis. Sem isso, o uso da força na resolução de disputas se torna cada vez mais constante.
O segundo ponto envolve a proteção da dignidade e dos direitos humanos, que precisam ser não apenas respeitados, mas efetivamente desfrutados pelas pessoas. Já a terceira escolha refere-se à justiça climática, com uma transição energética justa. Isso exige respeito ao princípio das responsabilidades compartilhadas, porém desiguais, e ampliação do financiamento climático.
O quarto compromisso diz respeito à governança da Inteligência Artificial. É preciso garantir o respeito aos Direitos Humanos; o amplo acesso a estas novas tecnologias; e seu uso em serviço da humanidade, não de interesses particulares. Por fim, a quinta escolha é pela renovação e manutenção da própria instituição, reforçando o compromisso dos países membros com a Carta da ONU. Para tanto, Guterres reconheceu que é preciso reformar a organização, para que seja mais representativa e continue sendo central na resolução de crises internacionais.
O cientista político Robert Gilpin, referência nas Relações Internacionais, argumentava que momentos de transição na distribuição de poder são marcados por competição acirrada, instabilidade e sucessão de crises. Esses períodos podem culminar numa grande guerra, que redefine a ordem internacional. Contudo, o autor via também a possibilidade de uma transição pacífica, especialmente em um mundo em que as armas nucleares geram desincentivos para uma guerra total.
Resta a questão: nesse contexto, que papel a ONU pode exercer para contribuir para que a transição na ordem internacional aconteça de forma pacífica? Além de reformas que reflitam a nova dinâmica global, a responsabilidade de escolher o caminho da cooperação e do respeito às regras e normas internacionais, como a Carta da ONU, ainda é um dever e uma responsabilidade individual dos estados-membros. Sobretudo, das principais potências incumbentes e das que estão em ascensão.