O governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro descreveu a operação contra criminosos ontem no Rio de Janeiro – que terminou com uma contagem ainda incompleta de mais de 120 mortos – como uma “guerra contra o narcoterrorismo”.
Sob o ponto de vista das organizações de direitos humanos, o que ocorreu ontem no Rio, mais uma vez, tem um outro nome, que a foto de dezenas de cadáveres seminus expostos na rua sugere. Foi um massacre. Elas pedem investigação e apontam violações graves. Não terá sido a primeira, nem a última vez.
Lógica do confronto nunca resultou em melhorias
A política de medir força armada com o tráfico é um erro conceitual e estratégico que vem sendo repetido há décadas no Rio de Janeiro. A lógica do confronto aberto em áreas controladas por facções do tráfico nunca resultou em melhoria alguma. Ela apenas produziu mortes, sofrimento, perda de acesso a serviços públicos, de mobilidade urbana e destruição da vida nas comunidades. Os mais frágeis sempre sofrem mais. A economia é afetada, e o problema continua intacto.
A cada nova operação nesses moldes, o Estado aposta que vai conseguir liberar territórios e garantir circulação. Isso nunca funcionou e não vai funcionar. Tudo o que vimos na terça-feira — ônibus queimados, tiroteios, blindados, helicópteros sobrevoando favelas — é apenas uma imensa cortina de fumaça.
Uma nuvem espessa que cega a todos e impede de enxergar o que realmente está acontecendo. Dizer que é o bem contra o mal, polícia contra bandido, forças de segurança contra vagabundos, é apostar num dualismo primário que só alimenta o conflito.
O que existe, na prática, é uma simbiose. A estrutura do crime está enraizada e cresce no interior da própria estrutura do Estado. A guerra está, atualmente, infiltrada nas estruturas estatais. Quem negocia armas, desvia drogas apreendidas, sequestra traficantes para ganhar dinheiro, vende proteção e lucra com a guerra está dentro do Estado. É a própria estrutura da segurança pública que está na essência desse problema.
Quinze anos depois, as mesmas cenas
Quando o governo diz que precisa de mais caveirões, mais armas, mais operações, está jogando gasolina nessa fumaça. O problema não é falta de poder bélico, mas a ausência de um projeto real de segurança pública. O que se repete é o improviso, o espetáculo, a política da bala que vira manchete, mata pessoas de todas as idades, muitas vezes dentro de suas casas ou voltando da escola, e não muda nada.
Basta lembrar o que aconteceu no Complexo do Alemão em 2010, que foi palco de uma das operações policiais e militares mais midiáticas e simbólicas da história recente do país. Durante sete dias, forças combinadas da Polícia Militar, Polícia Civil, Exército e Marinha cercaram o conjunto de favelas, com o objetivo declarado de retomar o território das mãos do Comando Vermelho, após uma onda de ataques a ônibus e postos policiais.
Aquela ofensiva envolveu cerca de 2.600 agentes, tanques e helicópteros — e resultou oficialmente em 36 mortes, dezenas de feridos e centenas de prisões. A cena dos traficantes fugindo pela mata, transmitida ao vivo pela televisão, foi usada pelo governo como símbolo de “vitória do Estado”, mas foi criticada por violência excessiva, execuções sumárias e pela ausência de políticas sociais posteriores.
O episódio marcou o início da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), apresentadas como uma nova era da segurança pública, mas que se deterioram nos anos seguintes.
Quinze anos depois, em 2025, as cenas são as mesmas. A estrutura de segurança pública continua comprometida com o tráfico, com as milícias, com as economias do crime. No entanto, é fundamental esclarecer que estrutura nunca foi autônoma, nunca foi independente, e sempre fez parte do sistema que deveria combater.
Como reformar uma instituição que está comprometida até os ossos? Se o Estado arma essa estrutura para resolver o problema, somente estimula os confrontos de volta. As facções — que são estruturas armadas não estatais — recebem armas e munição da própria estrutura estatal. Elas também ganham com a guerra. E o Estado, por sua vez, ganha politica e financeiramente com o ciclo da violência.
Não existem alternativas reais para a população que vive nesses territórios escapar aos danos desse confronto. Não há incorporação econômica, nem social, nem de trabalho, não há projetos políticos ou políticas públicas suficientemente estruturadas. Nada disputa o espaço das facções. O resultado é que o Rio atual é uma cidade inteira que se tornou refém. O que antes parecia restrito a um bairro ou a um complexo, agora está espalhado por toda a cidade.
As conexões entre as facções são mais amplas, os armamentos mais sofisticados, e a conivência do poder público mais evidente. Achar que se resolve isso com mais blindados é, a meu ver, palhaçada, estupidez e besteira.
Vazio estratégico e ético
Pode-se dizer que o Rio vive o controle conjunto do Estado e do tráfico, uma fusão de grupos armados estatais e não estatais que definem como a cidade funciona. Eles controlam o transporte, a mobilidade, o acesso e a circulação. São eles que regulam a vida urbana por meio do medo e da força. Estimular esses confrontos abertos encarando isso como se fosse uma solução só agrava o problema.
Não há como falar em combate ao crime se o crime está dentro da máquina pública. Do modo como vem sendo feito, o aumento da repressão à droga só tem logrado aumentar o preço da droga e concentrar o mercado nas grandes facções. O Rio virou um laboratório de fracassos, e o Brasil segue o mesmo caminho.
As facções cresceram porque o Estado é parte delas. E o que mais preocupa é que nenhuma estrutura estatal quer discutir essa integração do crime ao Estado, o que seria o verdadeiro debate sobre o que o Rio de Janeiro se tornou.
É absolutamente necessário falar das raízes históricas e estruturais da violência. O que há é um palanque permanente, construído sobre o confronto, as vítimas dessa guerra e o medo. A política e a mídia se alimentam dessa situação, mas não tocam no âmago da questão.
Poucos compreendem o universo do policial, o universo do traficante, o universo das comunidades — como elas sobrevivem, como se deslocam, como acessam saúde, educação e cultura. E quando não se compreende o território, o Estado atua às cegas.
O que temos hoje é um Estado cego dentro da própria fumaça que produziu. As instituições puxam cada uma para um lado — polícia, milícia, facções, governos, mídia — e ninguém enxerga o conjunto. O resultado é essa loucura que todos estamos presenciando: uma cidade governada pelo medo, pelo lucro e pela ausência de política.
A situação de violência na cidade facilita discursos que pregam que “bandido bom é bandido morto”, plataforma moralizante fácil de repetir e multiplicar em podcasts, lives, reportagens, ensaios. Essa visão se soma a uma sucessão de operações espetaculares e midiáticas que escondem o vazio estratégico e ético do Estado.
Os acontecimentos desta terça-feira 28 exibem o quanto o Rio de Janeiro está mergulhado em um colapso profundo. Vimos uma cidade inteira em pânico, com a população do morro e do asfalto igualmente acuadas.
Esta não é uma guerra entre bem e mal. É uma engrenagem que o Estado alimenta há décadas e que mistura violência, poder e economia. Se continuarmos nesse caminho, o desfecho será o mesmo: mais ações policiais, mais mortes, mais fumaça e menos perspectivas de um futuro melhor.





