No dia 17 de novembro, o presidente Lula sancionou a Política Nacional de Linguagem Simples (Lei 15.263/25). O item XI do art. 5º da nova lei, no entanto, é um projeto de exclusão.
Ao determinar “não usar novas formas de flexão de gênero” em documentos públicos, a lei cria um universo legal que vai além das “regras gramaticais consolidadas”, afetando as pessoas que têm o direito de ter seu gênero reconhecido na língua e nas dinâmicas sociais.
No Brasil, há um senso comum perverso sobre a língua: que o português é difícil, que o brasileiro não sabe falar e que a língua é um objeto estável, já totalmente descrito por gramáticos.
Essa visão, no entanto, longe de ser inocente, pode revelar orientações ideológicas profundas, marcadas por valores de classe, raça e identidade nacional.
Ela está entranhada na própria formação de professores de português, pois em muitos cursos de Letras ainda se há um beletrismo anacrônico que cultiva a ficção de uma língua homogênea com uma forma ideal, bela e pura – que não aceita novas formas.
Desse “terraplanismo linguístico”, decorre uma consequência direta: inovações e mudanças vindas de grupos historicamente negligenciados, marginalizados ou perseguidos, são frequentemente rechaçadas por discursos intolerantes, que visam controlar ao mesmo tempo, língua e falantes, baseados em um ideal burguês de sociedade e família.
Lei e língua
Esse impulso purista e legislador não é novo: em 1999, o Projeto de Lei 1676/99, do deputado Aldo Rebelo, pregava punições para o uso de expressões estrangeiras.
Em 2001, a Revista Veja publicou o artigo “Todo mundo fala assim”, de Leonardo Coutinho. Ainda que não propusesse uma regulação legal, Coutinho usou termos jurídicos para tratar da língua. As gramáticas descritivas do português de Ataliba de Castilho e Maria Helena de Moura Neves, que estão entre os nomes mais importantes da linguística brasileira, foram tratadas como “habeas corpus” e “anistia” para os “pecados gramaticais”.
Mais recentemente, a Portaria nº 604/21, da Secretaria Especial da Cultura, e o PL 948/21, que chegou a se tornar lei [5123/2021] (https://agenciacenarium.com.br/especialistas-e-ativistas-comemoram-suspensao-da-lei-que-proibia-linguagem-neutra-em-rondonia/, em Rondônia, depois derrubada pelo STF (https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/02/11/stf-conclui-julgamento-e-derruba-lei-estadual-que-proibe-linguagem-neutra-em-escolas.ghtml, tentaram proibir o uso da chamada linguagem neutra em projetos culturais e escolas.
O art. 1º da Lei derrubada, inclusive, tem redação quase idêntica ao texto do item XI do art. 5º Lei da Linguagem simples, uma vez que afirma que o que vale no Estado de Rondônia é a língua portuguesa, “de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino estabelecidas com base nas orientações nacionais de Educação, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VolP) e da gramática elaborada nos termos da reforma ortográfica ratificada pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”.
Essas propostas de legislar a língua e criminalizar usos se conectam diretamente ao negacionismo científico e ao extremismo de partidos de direita. Elas não buscam compreender a realidade viva da língua, mas impor uma moralidade sobre seus usos, defendendo um projeto excludente de nação.
Seja para atacar a ciência linguística, seja para assumir uma posição patriota e nacionalista de língua, ou ainda para atacar grupos sociais historicamente marginalizados, a proposta de regular a língua é sempre uma estratégia política.
Por meio da língua se estabelece um forte sentimento de identidade e de manutenção dessa identidade, e não por acaso os movimentos ultranacionalistas e totalitários buscam regular também a linguagem. O Nazismo de Hitler chegou a produzir uma Lingua Tertii Imperii (LTI), isto é, a Língua do Terceiro Reich, que, verdade seja dita, era usual, mas não legal.
Uma questão de identidade
Quem crê que a língua portuguesa falada no Brasil é a de Camões, como o afirmou recentemente a instagramer Cintia Chagas, projeta sobre a sociedade esses mesmos valores, colocando a cultura brasileira como submissa à cultura portuguesa. Trata-se de um mundo de valores restritos e excludentes.
Defender o “pretuguês”, como fez Ana Maria Gonçalves em sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), é justamente ampliar as concepções de mundo, reconhecer a diversidade e ver na língua portuguesa brasileira sua força motriz africana e romper com um ideal colonial.
Na questão de gênero, a situação é a mesma. Quem defende o uso do masculino genérico em detrimento de formas inclusivas está, no fundo, defendendo um mundo masculinista. Isso porque, como já muito bem demonstrou, no século 20, Simone de Beauvoir, o genérico masculino representa simultaneamente o positivo e o neutro, ao passo que o feminino é apenas a forma negativa, marcada.
Em /homem/ estão o masculino e a humanidade, incluído aí o feminino. Em /mulher/, apenas o feminino. Ou seja, o masculino genérico funciona bem para uma sociedade em que o homem (branco, heterossexual e cisgênero) é o modelo de ser humano, em uma hegemonia do masculino.
Voltando a Portugal: os trovadores portugueses, no século 13, só podiam marcar o gênero feminino de suas musas usando outros termos determinantes (como pronomes ou artigos), uma vez que “senhor”, assim como “pecador”, “pastor” e “burguês”, possuía uma única forma flexionável quanto ao gênero, que era usada tanto para o masculino, quanto para o feminino, em um modelo de masculino genérico: “mia senhor” era o modo como se referiam às senhoras, às mulheres. Foram centenas de anos para que se possa dizer senhora – admitindo regularmente a flexão com o morfema de feminino – sem que isso denote forma de desvio ou resistência.
Assim aconteceu com inúmeros usos, inventados ou emprestados de outras línguas: foram sendo admitidos, especialmente quando a percepção das pessoas sobre esse uso era socialmente positiva.
Ou seja, uma questão evidentemente social – o trânsito das mulheres por espaços nunca dantes navegados, em uma sociedade em processo de mudanças – promoveu uma mudança na língua portuguesa. No francês, ao contrário, nomes masculinos são ainda mantidos para muitas profissões, permitindo expressões como “madame le juge” (senhora “o” juiz).
A questão de gênero é antiga: trata-se reconhecer a dignidade de todas as pessoas, no mundo das palavras e no mundo social.
Transfobia de Estado
Eis o ponto crucial do debate: quem nega a existência de formas não-sexistas e não-binárias na língua, nega também que o mundo social as realize como formas de vida legítimas. Tornar isso lei é ratificar a transfobia como política de estado. Na letra da lei, um uso linguístico se torna contravenção ou crime.
É um ataque direto às próprias pautas que o presidente Lula diz defender. Justamente ele, que sofreu ataques baseados no preconceito linguístico das elites “letradas”, agora sanciona uma lei que define que o “povo brasileiro” – aquele que simbolicamente lhe entregou a faixa presidencial – não pode ser não-binário.
E isso é muito grave porque o Decreto nº 8.727/2016, assinado pela presidenta Dilma Rousseff, representou um avanço crucial ao garantir o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais na administração pública federal. Instituições públicas como o SUS têm atualizado seu cadastro para incluir sete orientações sexuais e sete identidades de gênero, incluindo não-binários, demonstrando um compromisso com a saúde integral da população LGBTQIAPN+.
Até 2012, o título acadêmico atribuído a uma mulher, no Brasil, era o de Doutor em Linguística. Foi Dilma Rousseff também quem sancionou a Lei nº 12.605/2012, que prevê que “as instituições de ensino públicas e privadas” devem expedir “diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido”.
No Brasil, pessoas não-binárias já podem retificar o registro civil para fazer constar o gênero neutro. O mesmo para pessoas intersexo. Como ficam os documentos de identificação, certidões, diplomas com as “novas formas de flexões de gênero”, proibidas no artigo XI da Lei de Linguagem Simples, sancionada por Lula?
Ao proibir “novas formas de flexão de gênero”, Lula cria uma contradição perversa: enquanto o Estado reconhece identidades não-binárias em políticas de saúde e do ponto de vista jurídico, nega-lhes o reconhecimento linguístico e simbólico em documentos oficiais. Essa inconsistência configura uma exclusão institucional que viola o direito à identidade e à cidadania plena para pessoas não-binárias.
Língua e vida social são indissociáveis. Formas linguísticas, ainda que não determinem, influenciam o modo como pensamos e reagimos ao mundo. Um mundo de linguagem dicotômica e sexista produz mais sexismo: meninos de azul e meninas de rosa como sintagmas importantes desse discurso radical.
Felizmente, a língua não pertence a ninguém. Porque pertence a todo mundo. Quem tenta domesticar a língua, colonizá-la, fracassa. Porque eu, nós, iles e elus, resistimos. E menines vestem o que quiserem.
