O sistema internacional atravessa uma fase de transição marcada pela diluição da centralidade das potências ocidentais e pela multiplicação de polos de influência. A antiga lógica do multilateralismo institucional, que girava em torno de fóruns dominados por Washington e Bruxelas, cede espaço a uma realidade fluida, na qual alianças se formam e se desfazem conforme temas e interesses específicos. Apesar das incertezas geradas, essa metamorfose abre certas possibilidades para os países do chamado Sul Global, especialmente na América do Sul.
O Grupo dos Vinte, em 2023, sinalizou esse deslocamento ao admitir a União Africana como membro permanente e reconhecer que não existe consenso pleno em relação à guerra na Ucrânia.
Espaço para posições divergentes
No mês passado, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o mundo “caminha para uma ordem multipolar”, qualificando essa situação como realidade e oportunidade. A mensagem é clara:o espaço para posições divergentes e coalizões temáticas se ampliou, e o futuro dificilmente seguirá o modelo rígido da Guerra Fria.
Nesse cenário, economias intermediárias como Índia, Brasil, África do Sul e Indonésia reivindicam maior autonomia decisória, embora enfrentem restrições derivadas da dependência tecnológica e da pressão financeira das grandes potências.
Na esfera regional, organizações como BRICS, CELAC e UNASUR exibem maior relevância política e simbólica, mas carecem de engrenagens executivas sólidas que permitam transformar consensos em normas efetivas. A cúpula do BRICS realizada em julho deste ano, no Rio de Janeiro, reafirmou a intenção de ampliar a coordenação global.
Vitrines diplomáticas
De fato, a agrupação tem incluído novos parceiros, consolidando o bloco como espaço de contestação à ordem estabelecida. Para a América do Sul, esses fóruns funcionam como vitrines diplomáticas para propostas alternativas em comércio, energia e segurança, embora ainda faltem instrumentos institucionais para executar decisões de maneira vinculante.
Em outras palavras, ao contrário de organismos como a União Europeia, esses fóruns sul-americanos não têm estruturas que obriguem os países membros a seguir automaticamente as decisões tomadas coletivamente. Faltam mecanismos práticos, como tribunais supranacionais, órgãos executivos com poder real ou tratados que sejam aplicados diretamente na legislação nacional de cada país. Em geral, acordos e resoluções dependem da vontade política de cada governo para sair do papel, o que limita sua eficácia e a transformação de consensos em normas realmente obrigatórias.
Apesar da retórica de emancipação, o risco de substituir antigas dependências por novas relações assimétricas é evidente. A crescente presença da China em infraestrutura, energia e plataformas digitais cria oportunidades de financiamento e acesso a mercados, mas também impõe regras desenhadas em Pequim.
Habilidade diplomática
Ao mesmo tempo, Estados Unidos e União Europeia continuam controlando instituições financeiras globais e determinando parâmetros de regulação tecnológica. Nesse tabuleiro, o espaço de manobra sul-americano permanece condicionado à habilidade diplomática de diversificar alianças e reduzir vulnerabilidades.
Embora os países sul-americanos tenham margem para buscar novos parceiros internacionais e tentar aumentar sua influência, eles ainda dependem de sua capacidade de negociação e de adaptação a um cenário global de constantes pressões.
Esse “espaço de manobra” consiste em aproveitar oportunidades de diálogo, fazer acordos comerciais variados, investir em inovação e tentar reduzir vulnerabilidades ligadas, por exemplo, à dependência de tecnologia estrangeira ou à suscetibilidade a sanções econômicas. No fundo, trata-se de equilibrar interesses e mitigar riscos para garantir maior autonomia e poder de decisão.
O campo monetário ilustra essa ambiguidade. O dólar segue como referência dominante em reservas internacionais e transações comerciais, representando cerca de 57,7% das reservas oficiais no início de 2025, enquanto o euro mantém-se como segunda moeda global, com quase 20%.
O renminbi chinês avança de forma modesta, apesar da propaganda de desdolarização (experiências de comércio em moedas locais ou yuan sinalizam alternativas, como os acordos entre Brasil e China para transações em moedas nacionais, mas ainda carecem de escala e estabilidade. A região enfrenta o dilema entre buscar instrumentos financeiros próprios e lidar com a persistência da hegemonia do dólar, enquanto os EUA mantêm influência cambial significativa.
Outro terreno estratégico envolve a tecnologia. A corrida por semicondutores, inteligência artificial e litografia avançada define muito mais que a competitividade econômica: projeta-se sobre a soberania nacional. Restrições impostas por Washington e aliados europeus ao fornecimento de chips de última geração à China reforçam a concentração da inovação em poucos polos.
Para países sul-americanos, a alternativa está em investir em planos de computação nacional e ampliar a formação de especialistas para inserção em cadeias globais de valor.
Ou seja, além de investir em infraestrutura e pesquisa científica própria, esses países precisam criar programas educacionais robustos para capacitar profissionais em áreas estratégicas. Por exemplo: engenharia eletrônica, ciência de dados, fabricação de semicondutores, robótica, cibersegurança e outros ramos ligados ao desenvolvimento tecnológico. Só com essa base humana será possível participar das cadeias globais de produção de alta tecnologia, conquistar autonomia produtiva e atrair investimentos internacionais para o setor.
Frente ao uso recorrente de sanções e bloqueios como instrumentos geopolíticos, muitos governos do Sul Global experimentam mecanismos de resiliência, como sistemas de pagamento alternativos, diversificação de rotas energéticas e acordos em moedas locais. Essas iniciativas ainda são incipientes e enfrentam resistência das potências estabelecidas, mas sinalizam a tentativa de fortalecer a autonomia decisória.
Debate sobre neutralidade ganha relevo
A América do Sul participa desse processo de forma heterogênea.O Brasil busca liderança regional e projeção global, conciliando relações com Washington, Pequim e Bruxelas. A Argentina oscila entre aproximações pragmáticas e retrações políticas. Países andinos e amazônicos alternam estratégias conforme agendas internas e ambientais, enquanto o Novo Banco de Desenvolvimento e outras entidades, como a The Coalition for Human Rights in Development enfatizam independência e energia sustentável.
O debate sobre neutralidade também ganha relevo. A ideia de um “novo não-alinhamento” revela-se limitada diante da interdependência tecnológica e financeira global. A autonomia seletiva surge como alternativa estratégica, permitindo decisões caso a caso e negociações equilibradas.
A neutralidade plena tornou-se difícil porque quase todos os países dependem hoje de cadeias globais de produção, normas técnicas internacionais e sistemas financeiros integrados. Por isso, a estratégia da autonomia seletiva propõe que os Estados façam escolhas pragmáticas: negociando com diferentes parceiros conforme seus próprios interesses em cada área (comércio, tecnologia, energia, etc.), sem se comprometer integralmente com um bloco ou alinhar-se a uma potência. A ideia subjacente é incrementar a flexibilidade e capacidade de adaptação diante das rápidas mudanças no sistema internacional.
Potências intermediárias, como Turquia, Índia, China e Brasil, assumem papéis de mediação em negociações geopolíticas e climáticas. O cenário permanece em aberto, dependente de fatores como reservas do FMI, gastos militares globais e a competição tecnológica.
Para que Brasil e seus vizinhos transformem discursos de autonomia em protagonismo real no cenário global, torna-se essencial investir em inovação tecnológica regional — como o desenvolvimento conjunto de inteligência artificial e a formação de especialistas —, impulsionar fundos regionais de infraestrutura e pesquisa, criar/agregar agências nacionais de inovação e integrar-se ativamente a fóruns multilaterais por meio de iniciativas concretas e coordenadas.
A adoção dessas medidas, com projetos estruturados e recursos definidos, é o que permite traduzir ambição autônoma em impactos efetivos e sustentáveis, superando a mera retórica diplomática e ampliando de fato a influência da região no sistema internacional.