Como pesquisadora associada do Departamento de Biologia da Universidade de Oxford, trabalho com modelagem de uso da terra para avaliação de políticas ambientais e climáticas com foco no Brasil em duas iniciativas: a Iniciativa de Soluções Baseadas na Natureza (Nature-Based Solutions Initiative) e de emissões líquidas zero (Oxford Net Zero). No meu trabalho, faço modelagem econômica do uso da terra para gerar cenários futuros e calcular, por exemplo, trajetórias de emissões, a partir de diferentes hipóteses e premissas.
Net Zero
Em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro e a pandemia de COVID-19, estava bem difícil morar e ser uma pesquisadora da área ambiental no Brasil. Eu era pesquisadora no INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e o meu projeto estava acabando sem previsão de continuação. Foi quando eu apliquei para uma posição de pesquisadora associada na Universidade de Oxford e fui selecionada. Era o ano da COP 26, em Glasgow.
Naquela COP, vários países fizeram anúncios de emissões líquidas zero: foi a COP do net zero. E o governo do então presidente Jair Bolsonaro também fez o compromisso de atingir net zero na metade deste século ao mesmo tempo que o desmatamento na Amazônia alcançava taxas recordes (a maior taxa dos últimos 15 anos). Foi quando decidi mostrar, cientificamente, que o discurso internacional era incompatível com a política doméstica, ou seja, que era impossível para o Brasil chegar ao net zero com aquelas taxas de desmatamento.
O Net Zero é um conceito muito usado na agenda política: países e empresas se comprometem com a neutralidade de carbono e neutralidade climática. Mas o Net Zero é um conceito da ciência física do clima, que define o que precisa ser feito para limitarmos o aquecimento global.
A temperatura do planeta só vai parar de aumentar quando conseguirmos estabilizar os gases que estão na atmosfera. E hoje a humanidade coloca muito mais gases de efeito estufa na atmosfera do que a nossa capacidade de absorvê-los.
Os sumidouros terrestres e dos oceanos absorvem, a cada ano, em torno de 50% a 55% do CO2 que emitimos pelas atividades humanas. O saldo, portanto, sempre fica acima do que somos capazes de remover.
É como uma banheira que tem uma torneira enorme aberta e um ralo pequeno. A torneira representa as nossas emissões, e o ralo a capacidade do planeta de absorvê-las. Se não fecharmos essa torneira de forma significativa e não aumentarmos esse ralo, a banheira vai transbordar. Esse transbordamento significa ultrapassar a meta de limitar o aquecimento a 1,5°C estabelecida pelo Acordo de Paris.
Nossa melhor chance de conter o aquecimento global é através desse balanço entre tudo o que emitimos e o que removemos de gases de efeito estufa na atmosfera, ou seja, através das emissões líquidas zero (no inglês, Net Zero).
Modelando futuros possíveis
O interessante da modelagem é que, com ela, podemos gerar futuros alternativos possíveis. Nós, modeladores, juntos com tomadores de decisão, imaginamos esses futuros, rodamos os nossos modelos e tentamos entender o que precisa acontecer para chegarmos a esse futuro imaginado. Nossas pesquisas partem de perguntas como: O que aconteceria se uma determinada política ambiental fosse implementada em sua totalidade? Ou então, que políticas deveriam ser criadas para se chegar a uma determinada meta de emissões?
Em um estudo nessa área publicado em 2023 na revista Global Change Biology e que tive a oportunidade de liderar, trabalhamos com dois modelos: um de uso da terra e agricultura que é espacialmente explícito e detalhado para capturar o desmatamento e o mercado de commodities da agropecuária, o qual eu sou a principal desenvolvedora, chamado GLOBIOM-Brazil; e um modelo desenvolvido pelo grupo do professor Roberto Schaeffer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chamado BLUES, que é muito bom para projetar emissões do setor de energia. Combinamos os dois melhores modelos econômicos regionais existentes no Brasil hoje para gerar cenários de trajetórias de net zero.
A maior fonte de emissões do Brasil vem de atividades relacionadas ao uso da terra (incluindo a agricultura e pecuária), mas sobretudo pelo desmatamento. Vale lembrar que a agropecuária é um dos principais vetores de desmatamento no país, e as emissões do próprio setor da agricultura contam com o metano emitido pelo gado durante a sua digestão no processo de fermentação entérica. Somados, esses três fatores emitem, juntos, cerca de ¾ das emissões brutas brasileiras de gases de efeito estufa. O setor de energia é apenas o terceiro emissor.
No contexto global, costuma ser o contrário: cerca de ¾ das emissões brutas são relacionadas ao setor de energia e a queima de combustíveis fósseis. É, portanto, muito importante reconhecermos que é preciso parar de queimar combustíveis fósseis, que são a principal fonte de emissões globais. No Brasil, as emissões vêm, sobretudo, das atividades em torno do uso da terra: desmatamento e agricultura.
A pesquisa
Geramos nossos cenários sempre partindo das políticas nacionais existentes. Por exemplo, o que aconteceria se o Código Florestal fosse cumprido em sua totalidade? Ou como ir além do Código Florestal?
O Código Florestal é a principal política que controla o uso da terra em propriedades privadas no país. O Código atual foi revisado em 2012, mas é uma legislação da década de 1960. Se levarmos em consideração um decreto da década de 1930, são quase 100 anos de uma legislação para a proteção da vegetação nativa e conservação da biodiversidade no Brasil.
Apesar da sua enorme importância, o Código Florestal nunca foi cumprido em sua totalidade. Se ele fosse cumprido em todos os biomas, em todo o país, quanto isso contribuiria para a agenda de redução de emissões?
Nosso estudo mostrou que, se o Código Florestal fosse implementado em sua totalidade, o Brasil conseguiria cumprir com tranquilidade as suas metas de curto prazo da NDC (Contribuições Nacionalmente Determinadas), até 2035. Mas apenas o cumprimento do Código Florestal não é suficiente para cumprir a meta do Net Zero em 2050.
O pleno cumprimento do Código Florestal é, portanto, muito importante para nos colocar na direção do Net Zero. Mas sozinho ele não é suficiente. O estudo mostra que é preciso ir além do Código Florestal. Então, precisamos discutir a criação de políticas complementares a essa legislação que nos permitam eliminar o desmatamento legal, sobretudo no Cerrado, e avançar rumo ao Net Zero.
Outro resultado a que chegamos na pesquisa é que não tem como chegar no Net Zero sem as soluções baseadas na natureza (SbN). O modelo mostrou que as soluções tecnológicas do setor energético – como a captura e armazenamento de carbono, por exemplo – também não conseguem sozinhas nos levar ao Net Zero.
Nosso estudo mostra que quase 80% do caminho para o Net Zero brasileiro pode ser cumprido com SbN, principalmente, eliminando o desmatamento em todos os biomas e promovendo a restauração em larga escala dos nossos ecossistemas. Florestas plantadas de espécies exóticas como eucalipto não entram nas nossas premissas de restauração da vegetação nativa.
As SbN são um termo recente, que surgiu em 2008. Ele é considerado um termo guarda-chuva e engloba uma série de medidas, como a restauração de ecossistemas; a criação de sistemas agroflorestais nos quais a agricultura é diversificada; a infraestrutura verde dentro de cidades; ou a proteção de ecossistemas. O que é importante entender desse conceito é que usamos a natureza como nossa aliada para combater desafios como as mudanças climáticas ou a crise de perda de biodiversidade.
Outro aspecto central das SbN são os múltiplos benefícios que elas garantem. Peguemos como exemplo a preservação da floresta amazônica: além de evitar a liberação de toneladas de carbono na atmosfera, a proteção da floresta também contribui para a preservação da biodiversidade e para os serviços ecossistêmicos que ela fornece, como a água ou o regime de chuvas que é fundamental para a segurança alimentar e energética no Brasil. Quase 90% da produção agrícola nacional depende da água da chuva que, por sua vez, depende dos rios voadores da Amazônia. Ou seja: a agricultura existe no Brasil por causa da floresta em pé.
Mitigação e adaptação
Na cerimônia de abertura da COP 30, Simon Stiell, secretário-executivo da UNFCCC, mostrou gráficos sobre a trajetória das emissões de gases do efeito estufa antes e depois do Acordo de Paris e com as novas NDCs submetidas até 09 de Novembro e que deveriam aumentar a ambição para limitarmos a temperatura em 1,5o C. Olhando para os gráficos, podemos ver o copo meio cheio, ou meio vazio.
Sem o Acordo de Paris ou as COPs, estaríamos numa situação pior, e aqui temos o copo meio cheio. Mas ainda estamos muito aquém do necessário, e essa é a porção meio vazia do copo. Como disse o Lula no discurso de abertura da COP 30, estamos na direção certa, mas na velocidade errada. E, para que não ultrapassemos o aumento de 1,5o C (o qual será inevitável ultrapassar, infelizmente), precisaríamos reduzir as nossas emissões de CO2 em 43% nos próximos cinco anos.
E é aqui que a agenda da adaptação se torna tão importante. O que vem primeiro, mitigação ou adaptação? A mitigação é a redução da emissão dos gases de efeito estufa que estão aumentando a temperatura no planeta. A adaptação é conseguirmos viver com o problema já estabelecido. Então, parece lógico que a mitigação venha primeiro, mas não temos mais essa opção. Os eventos climáticos extremos estão cada vez mais intensos e frequentes, então temos que nos adaptar. Mitigação e adaptação têm que ocorrer ao mesmo tempo.
Também não podemos esquecer da crise de perda de biodiversidade. Precisamos atacar essas duas crises simultaneamente, de forma sinérgica, alinhando as políticas de clima e biodiversidade. Proteger os nossos ecossistemas e acabar com o desmatamento são uma solução que vai tanto na direção do clima, de redução de emissões (ou seja, da mitigação), quanto da adaptação, pelos serviços ecossistemas que a floresta presta e pela preservação do habitat de milhões de espécies. Não podemos deixar de mencionar os milhões de pessoas — comunidades tradicionais e povos indígenas — que são dependentes dessa floresta.
São justamente essas populações, que menos contribuíram para essas crises, que hoje estão na linha de frente de seus impactos. A COP30 em Belém oferece uma oportunidade histórica para incorporar de forma significativa a natureza na discussão climática. Este é o lugar certo e este é o momento certo para uma decisão sobre essa agenda.
É preciso entender que biodiversidade é essencial, não opcional. Implementar o Acordo de Paris requer uma agenda integrada que reconheça que as sinergias não são um jogo de soma zero, mas uma aliança para a transformação sistêmica. Apenas alinhando nossos esforços para o clima, a biodiversidade e a economia poderemos garantir um futuro seguro e justo para todos.
