“Presidente, ativista, referência e líder. Sentiremos muita falta de você, querido velho”.
Foi assim que o presidente do Uruguai, Yamandú Orsi, anunciou ao mundo agora há pouco, numa rede social, a morte neste 13 de maio de 2025 do ex-presidente e ídolo histórico nacional José “Pepe” Mujica, vencido por um câncer no esôfago e no fígado, e duas doenças autoimunes, uma semana antes de completar 90 anos de idade.
O 40º presidente da República Oriental do Uruguai foi possivelmente o símbolo político mais conhecido do país vizinho em toda a América Latina. O ex-mandatário uruguaio é e será lembrado por sua vida simples, seu estilo campesino austero e, sobretudo, por seu carisma, que sempre transparecia em máximas concisas, mas profundas.
Nos últimos meses, já bastante debilitado, “El Pepe” refletia sobre a vida e a morte. Entrevistado pela CNN En Español, ao ser perguntado sobre a existência de Deus, afirmou que Deus não existia, pois “a vida é apenas a aventura das moléculas”. E completou: “Nesse punhado de tempo em que estamos sobre a superfície terrestre, estão o paraíso e o inferno. Está tudo junto aqui. Viemos do nada e vamos ao nada”.
Apesar da aparência niilista da citação, ela vai muito além de sua roupagem, especialmente se considerarmos que o ceticismo clerical é mais aceitável no Uruguai, o país mais laico da América Latina. No fundo, revela a essência de um homem que viveu tanto “o paraíso” quanto “o inferno” neste mundo.
Sua vida política longeva o levou a experiências diversas que ultrapassaram a política institucional: guerrilheiro, preso político, anistiado, deputado, senador, ministro no primeiro governo de um partido de esquerda na história do Uruguai, presidente da república e, posteriormente, senador novamente. Ainda assim, fica a pergunta: nessa grande “aventura das moléculas”, quem foi José Mujica? E qual será o seu legado?
Dentro do Uruguai, Mujica é lembrado por sua trajetória na guerrilha e na política institucional. “El Pepe” se aproximou da luta armada nos anos 1960, quando a guerrilha se articulava contra o regime político instaurado por Jorge Pacheco Areco (1967-1972). Embora Areco tenha chegado ao poder democraticamente — sucedendo Oscar Gestido, que faleceu nove meses após assumir a presidência —, seu governo adotou medidas cada vez mais repressivas para conter a crescente insatisfação popular, resultado do estancamento da economia uruguaia naquela década.
13 anos em cárcere
Nesse cenário, Mujica participou das operações do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaro, movimento armado de inspiração cubana, possivelmente o mais notório da região nos anos 1960 e início dos 1970. Foi preso quatro vezes. Na última, pouco antes do início da ditadura uruguaia (1973-1985), quando os Tupamaros já estavam derrotados, ficou encarcerado por treze anos, de 1972 a 1985. Esse período de sua vida foi retratado no filme “Uma noite de 12 anos”. Com a redemocratização e a presidência do colorado Julio María Sanguinetti, foi beneficiado pela política do “câmbio em paz”, que promulgou a lei de anistia.
Com a reabertura democrática, Mujica ingressou na Frente Ampla, coalizão criada em 1971 que reunia diversas forças de esquerda. Dentro dela, fundou seu próprio partido, o Movimento de Participação Popular (MPP). Em 1994, foi eleito deputado e, em 1999, senador — ambos os cargos pela província de Montevidéu. No governo de Tabaré Vázquez (2005-2010), tornou-se ministro da Agricultura e se destacou por suas declarações francas e diretas. Ao deixar o ministério, retornou ao Senado e passou a buscar apoio para sua candidatura presidencial em 2010, incluindo alianças com líderes estrangeiros, como o casal Kirchner, em um momento sensível das relações entre Uruguai e Argentina devido às disputas sobre a fábrica de celulose da UPM na fronteira.
Como presidente, Mujica deu continuidade aos esforços de seu predecessor para garantir crescimento econômico e redução da desigualdade. A política de aumento real do salário mínimo contribuiu para a queda do percentual de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, que passou de 32,5% em 2006 para 9,7% em 2015, assim como para a redução do índice de Gini, que caiu de 45,9 para 40,1 no mesmo período. Seu governo também promoveu reformas importantes em diversas áreas: aprovou a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, regulamentou o consumo recreativo de cannabis e legalizou o casamento homoafetivo.
Nunca uma unanimidade em seu país
Contudo, Mujica não foi uma figura unânime dentro do Uruguai. Alguns de seus projetos tiveram impacto consideravelmente menor do que o esperado. Foi o caso da Universidade Tecnológica, criada para descentralizar o ensino técnico no país, mas que, em 2022, contava com pouco mais de 3.000 alunos. Outro exemplo foi o Plan Juntos, programa de habitação popular financiado por parcerias público-privadas e até pelo próprio salário de Mujica, que ao final de seu governo entregou apenas 2.800 residências.
Além disso, sua postura conciliatória em relação aos militares condenados por crimes durante a ditadura gerou controvérsias. Em 2010, Mujica defendeu a liberação de militares idosos e afirmou que os atuais integrantes das Forças Armadas não deveriam carregar o peso das ações de seus predecessores.
Internacionalmente, no entanto, a figura de Mujica foi, ironicamente, mais unânime. Pela direita, Mujica foi visto como o modelo de esquerda a ser seguido: um moderado, um pragmático – que não hesitou em fazer concessões à economia de mercado quando necessário – e um “franciscano” – que não se corrompeu no poder e sabia evitar os excessos da máquina pública. Para a esquerda, Mujica foi uma espécie de guru, que com seu estilo de falar singelo, era capaz de congregar a luta pela igualdade social com a democracia.
Em suma, seu legado, como sua trajetória, é múltiplo. O “Pepe” que veio do nada e ao nada retorna deixa inúmeras facetas e, certamente, um impacto inolvidável na história dos séculos XX e XXI.