A dor é uma das experiências humanas mais universais e, ao mesmo tempo, uma das mais difíceis de tratar. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, a dor crônica afeta cerca de 30% da população do planeta. Apesar dos avanços da medicina, muitas pessoas ainda aguardam por medicamentos mais eficazes para dores persistentes — que sejam específicos, seguros e livres dos riscos de dependência e efeitos colaterais associados aos opioides tradicionais.
Nosso grupo de pesquisa, do Instituto de Biologia Roberto Alcantara Gomes (IBRAG), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), estuda o potencial do canabigerol (CBG), um composto não psicoativo presente na planta Cannabis sativa. Em um artigo científico, publicado recentemente, mostramos que essa substância tem efeitos promissores contra diferentes tipos de dor em roedores.
Um canabinoide ainda pouco explorado
Nos últimos anos, a Cannabis sativa voltou ao centro das atenções da ciência médica. A planta contém centenas de compostos bioativos, entre eles os fitocanabinoides — substâncias que interagem com o sistema endocanabinoide do nosso organismo, regulando funções como dor, sono, apetite e inflamação. Os mais conhecidos são o tetrahidrocanabinol (THC), responsável pelos efeitos psicoativos da maconha, e o canabidiol (CBD), que ganhou fama por seu amplo potencial terapêutico.
Menos conhecido, porém promissor, é o canabigerol (CBG). Considerado o “precursor químico” dos demais canabinoides, o CBG não provoca alterações de consciência ou sensação de “barato”. Estudos recentes têm mostrado que apresenta propriedades anti-inflamatórias e indicavam que pode ter efeito analgésico, mas seus efeitos no tratamento da dor ainda eram pouco investigados.
Dor aguda e crônica: desafios distintos
Para preencher essa lacuna, desenvolvemos um estudo experimental com roedores mais sensíveis à dor devido à falta de oxigênio durante a gestação ou nascimento. Essa condição, chamada de hipóxia-isquemia pré-natal, pode aumentar a sensibilidade à dor ao longo da vida, gerando um grande desafio no manejo seguro de analgésicos. Nós testamos três modelos de dor nesses animais e, em todos eles, avaliamos o efeito da administração oral de CBG, na concentração de 50 mg por quilo de peso corporal.
Os resultados foram animadores. No teste da placa quente, colocamos os camundongos sobre uma superfície aquecida a 52°C. Esse tipo de dor é processada pelo Sistema Nervoso Central, ou seja, não é apenas um reflexo periférico. O estímulo precisa ser percebido, processado no cérebro e resultar em uma resposta comportamental. Aqueles tratados com CBG demoraram mais tempo para reagir ao estímulo, como lamber a pata, sacudi-la ou tentar pular da placa quente, indicando que houve um efeito analgésico central.
Outro modelo utilizado foi o teste da formalina, que simula um tipo de dor aguda equivalente à picada de formiga, que é mais intensa nos primeiros 5 minutos e depois evolui para uma dor inflamatória local. A resposta observada permite distinguir duas fases: uma inicial, causada pela ativação direta dos nervos sensoriais (fase neurogênica), e outra mais prolongada, associada à inflamação. O tratamento com CBG reduziu significativamente a dor em ambas as fases.
Também avaliamos a eficácia do composto em um modelo de dor crônica do tipo neuropática, causada por lesões nos nervos ou na medula espinhal, e que não depende de um estímulo físico externo. Esse tipo de dor costuma persistir por meses e é de difícil controle, estando presente, por exemplo, em casos de neuropatia diabética ou dores pós-cirúrgicas. Nesse modelo, o CBG também foi eficaz: reduziu significativamente a sensibilidade à dor após cerca de 10 dias de tratamento contínuo.
Alívio sem prejuízo motor
Em estudos de novos analgésicos, é importante verificar se a substância testada não prejudica a função locomotora, como sedação, fraqueza muscular ou dificuldade ao se movimentar. Para isso, utilizamos o teste de campo aberto, que avalia a locomoção dos animais em ambiente controlado. Ele mede como o animal se comporta depois de receber o tratamento.
Os resultados mostraram que os ratos tratados com CBG continuaram ativos e se movimentaram normalmente, sem alterações locomotoras. Esse é um ponto positivo importante para qualquer medicamento destinado ao controle da dor.
Pistas sobre o que acontece no corpo
Fizemos análises moleculares que mostraram efeitos do CBG modulando a expressão de marcadores importantes ligados à dor e à inflamação. Inclusive, vimos que eles são distintos entre machos e fêmeas.
Nos machos, observamos que ele reduz a expressão de TNF-α, uma molécula inflamatória associada à intensificação da dor. Já nas fêmeas, o CBG atuou sobre a proteína Nav1.7, que está presente nos nervos e envolvida diretamente na condução dos sinais dolorosos até o cérebro.
Esses achados indicam que o CBG pode ir além do simples alívio da dor, interferindo também nos mecanismos biológicos que fazem com que ela se prolongue e se torne crônica. E mostram a importância de considerar diferenças biológicas entre os sexos em futuras pesquisas e tratamentos.
Caminhos futuros
Nosso trabalho, que contou com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), contribui para o avanço das evidências sobre o potencial medicinal de compostos derivados da cannabis no controle da dor. O canabigerol, embora ainda pouco estudado, mostrou-se um candidato promissor no tratamento de condições associadas à sensibilidade exacerbada à dor, um problema subestimado, mas com impactos profundos na saúde e qualidade de vida.
Apesar dos resultados positivos, ainda há muito a investigar. Os efeitos do CBG foram demonstrados em modelos animais, e são necessários estudos clínicos em humanos para confirmar sua eficácia, segurança, dose ideal, mecanismos de ação e os impactos de diferentes vias de administração, como por via tópica, oral e nasal. Também é importante entender melhor as diferenças observadas entre os sexos, que podem estar relacionadas a hormônios como o estrogênio, conhecido por influenciar tanto a dor quanto a resposta a canabinoides.
Em um cenário em que o Brasil discute a regulamentação de produtos à base de cannabis, é fundamental que as decisões políticas sejam guiadas por evidências científicas sólidas. Pesquisas como a nossa ajudam a esclarecer os reais benefícios e limitações desses compostos, e podem abrir novas possibilidades terapêuticas para quem ainda convive com dores sem alívio.
A divulgação deste artigo tem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).