A violência durante a infância pode ter repercussões nos relacionamentos amorosos durante a adolescência. É o que nos mostrou um estudo que nós, pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola de Saúde Pública de Harvard realizamos com adolescentes com idades entre 15 e 19 anos. O estudo foi publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, parceira do The Conversation Brasil
A pesquisa foi feita com estudantes do segundo ano do ensino médio de escolas públicas e privadas localizadas na IX Região Administrativa da cidade do Rio de Janeiro, que engloba os bairros do Andaraí, Grajaú, Maracanã e Vila Isabel.
Apesar de possuir o quinto maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, a região apresenta um padrão marcante de desigualdade. Casas, prédios e condomínios de classe média e alta são cercados por favelas e comunidades de baixa renda como os morros do Borel, Macacos e Complexo do Andaraí, marcadas pela falta de saneamento básico, condições precárias de moradia e altos níveis de violência.
O estudo
Para a realização do nosso estudo, identificamos uma amostra inicial de 1.470 alunos que frequentavam 52 turmas, entre cinco escolas públicas com turnos diurno e noturno e 15 escolas privadas com aulas diurnas. O cálculo do tamanho amostral levou em conta o objetivo do levantamento que era explorar a prevalência de violência no namoro entre meninos e meninas.
Queríamos estudar não só a vitimização, mas também a autoria da violência. A amostra foi então projetada em 747 adolescentes. Destes, 721 concordaram em participar. Mas para ser incluído, precisavam ter tido um relacionamento amoroso nos últimos 12 meses.
Dentro deste escopo, 556 adolescentes estavam habilitados. Devido ao pequeno número de estudantes autodeclarados indígenas e asiáticos, e considerando que sua inclusão na análise geraria estimativas imprecisas para esses subgrupos, optamos por excluí-los. Assim, a amostra final do estudo foi composta por 539 estudantes, que responderam de forma anônima e com garantia de privacidade um questionário de autopreenchimento sobre suas experiências de violência na infância e na adolescência, além de características pessoais e de suas famílias.
O questionário de autorrelato utilizado foi desenvolvido no Canadá, com foco na detecção de diferentes formas de violência no namoro entre adolescentes. O instrumento é composto por 25 itens distribuídos em cinco subescalas: violência física, violência emocional, violência sexual, comportamentos ameaçadores e violência relacional. Os itens apresentam quatro opções de resposta: frequentemente, às vezes, raramente e nunca.
Cerca de 70% dos participantes declararam alguma afiliação religiosa, sendo que quase metade apontou as religiões católica ou evangélica. Mais de 80% da amostra eram de adolescentes pertencentes às classes econômicas médias (classes B + C).
Dois quintos dos participantes tinham mães com até cinco anos de escolaridade. Cerca de 60% não viviam com ambos os pais. Estudantes de escolas públicas representaram 40% da amostra, sendo que apenas 10% frequentavam o turno da noite.
As violências durante o namoro
A prevalência de vitimização na amostra total foi alta para todos os tipos de violência, mostrando que tanto meninos, como meninas vivenciam com frequência a situação.
O tipo de vitimização mais frequente foi a emocional, relatada por 94,6% dos participantes. Em seguida, vem a violência física, com 1/3 (30,1%) dos adolescentes respondendo que já haviam sido vítimas. Em terceiro lugar, vieram as ameaças diversas (26,6%).
A violência sexual no namoro também chamou a atenção, pois os toques em partes do corpo sem consentimento e/ou atos sexuais não consentidos já haviam acontecido nos relacionamentos de 16,7% dos adolescentes.
O estudo também revela que os adolescentes ficaram à vontade para expor que praticam tais atos de violência, pois as prevalências de autoria destas violências chegam próximo às prevalências de vitimização, o que pode indicar uma naturalização desses atos como parte dos relacionamentos amorosos.
Curioso foi identificar que apenas no quesito de violência física, encontramos diferença estatisticamente significativa entre os sexos. Os meninos são os mais vitimizados. Em relação à perpetração, as meninas relataram cometer mais comportamentos ameaçadores e violência física contra seus namorados. Por outro lado, os meninos perpetraram violência sexual com maior frequência.
Sobre as histórias de vida, a maioria dos entrevistados relatou ter sofrido algum tipo de abuso ou negligência na infância. Quase 60% dos estudantes afirmaram já ter visto um corpo assassinado nas ruas ou ter tido um familiar assassinado.
Cerca de 40% tinham amigos envolvidos em violência juvenil, e 80% relataram ter consumido álcool nos três meses anteriores. Foi exatamente nos grupos que declararam estas experiências que as violências no namoro mais ocorreram.
Estes dados sugerem que temos que considerar todas as experiências de violência ao longo da vida em nossas estratégias de acolhimento de vítimas e autores.
Outros estudos
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) define a violência no namoro como situações que envolvem agressão física, sexual e psicológica ou perseguição (stalking) em relacionamentos afetivo-sexuais ocasionais ou de namoro, que podem ocorrer presencialmente ou por meios eletrônicos, entre parceiros atuais ou antigos, seja em relacionamentos heterossexuais ou homossexuais.
Um estudo de metanálise recente, que incluiu dados de diferentes países, estimou que 20% e 9% dos adolescentes haviam se envolvido, respectivamente, em violência física e sexual nos 12 meses anteriores às entrevistas.
Segundo a mesma pesquisa, as meninas cometem mais agressões físicas do que os meninos (25% vs. 13%). No caso da violência sexual, as meninas relatam menor perpetração (3% vs. 10%), mas maior prevalência de vitimização (14% vs. 8%).
Apesar de pesquisas indicarem que a violência no namoro pode ser bidirecional, estudos sugerem que meninas tendem a sofrer danos psicológicos e físicos mais severos e são, majoritariamente, as vítimas de violência sexual. No entanto, ainda faltam dados globais abrangentes sobre essa questão, e principalmente estudos em países de baixa e média renda. Apesar do crescimento da literatura científica sobre o tema, o número de estudos ainda é reduzido quando comparado àqueles que focam na vida adulta.
No Brasil, assim como em outros países da América Latina, relativamente poucas pesquisas quantificaram o problema entre adolescentes. O primeiro levantamento só foi realizado em 2008, com 3.205 estudantes, entre 15 e 19 anos de idade, cobrindo dez capitais estaduais e o Distrito Federal.
Os resultados relataram que 30% dos participantes haviam sofrido violência emocional, 24,2% haviam sido vítimas de ameaças no namoro e 29,2% haviam perpetrado esse tipo de violência em seu último relacionamento íntimo. A violência física envolveu 24,1% dos adolescentes como agressores, e 19,6% relataram ter sido vítimas.
A produção científica sobre o assunto aponta que a violência no namoro possui determinantes sociais, contextuais, relacionais e individuais. Mas poucos estudos epidemiológicos brasileiros investigaram se a prevalência da violência no namoro varia de acordo com certas características da população, como as que foram pesquisadas neste estudo.
Especificamente, em relação às correlações entre exposição à violência durante a infância e adolescência, apenas um estudo explorou o tema, enquanto nenhum investigou a distribuição da prevalência da violência no namoro de acordo com o histórico de vitimização comunitária.
Mensagem que fica
Com esse cenário, percebemos as altas frequências de exposição a diferentes tipos de violência durante a adolescência e a grande prevalência de estudantes que declararam ter visto um corpo assassinado ou ter tido um familiar morto sugerem a transversalidade dessas situações nos espaços de socialização.
Essa soma de adversidades implica que qualquer ação voltada ao enfrentamento da violência interpessoal deve adotar uma abordagem multidimensional e envolver instituições integradas e articuladas em rede.
Em nossa opinião, as escolas podem desempenhar um papel essencial nesse contexto, devido ao seu valor simbólico e à sua importância como espaços sociais para crianças e adolescentes.
Acreditamos que todo o ciclo escolar deve ser considerado como uma janela de oportunidade para abordar estratégias positivas e alternativas de parentalidade, a fim de evitar abusos na relação entre pais e filhos, apoiar relações saudáveis entre parceiros íntimos e discutir as consequências negativas da violência interpessoal no bem-estar dos adolescentes.
Além disso, gostaríamos de destacar que estudos sobre o tema violência no namoro e suas repercussões na saúde e qualidade de vida dos adolescentes e jovens envolvidos são extremamente necessários para que conheçamos melhor o problema, suas sutilezas e possamos propor estratégias para a sua prevenção.
Esperamos que os resultados da pesquisa possam estimular o debate entre pais, professores e adolescentes.
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A publicação deste artigo contou com o apoio da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes).





