Em outros países, a exemplo do Canadá, fugas de centros de acolhimento e a entrada ou o retorno de meninas a redes de exploração sexual é um tema abordado em reportagens e filmes. É também um viés importante de pesquisa acadêmica.
No Brasil, essa questão ainda não é objeto de investigações sistemáticas. Nesse contexto, os dados que obtivemos em um estudo recente representa uma primeira aproximação ao tema buscando explorar o campo de pesquisa. A singularidade de nosso trabalho foi captar as diferenças na forma de compreensão, por parte das meninas, dos meninos e de profissionais que trabalham em casas de acolhimento.
Ainda que muitos possam considerar um tema socialmente incômodo, compreender como pensam as meninas e os meninos implicados no mercado do sexo que vivem em casas de acolhimento auxilia a reflexão sobre políticas públicas.
No estudo em questão, foram entrevistados profissionais dos Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes de um município brasileiro de médio porte. As entrevistas ocorreram entre novembro de 2024 e fevereiro de 2025 e foram autorizadas pela Secretaria de Desenvolvimento e Serviço Social deste município.
Os Serviços de Acolhimento para Crianças, Adolescentes e Jovens recebem de forma provisória e excepcional de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por medida de proteção solicitada pela Justiça. Seu papel é o de garantir proteção, moradia, alimentação, vestuário, escolarização, acesso à saúde e convivência comunitária.
Os dados obtidos permitiram identificar duas dinâmicas principais: a busca, por parte de meninas, de estabelecer coabitação com homens mais velhos e com condições de sustentá-las; e a troca ocasional de sexo por bebidas ou drogas. Neste texto, trataremos da segunda dinâmica.
Nem prostituição, nem exploração
Ao longo das conversas que tivemos com profissionais das casas de acolhimento, foram mencionados diversos casos de adolescentes que fazem programas sexuais com o objetivo de manter o uso ocasional de drogas e bebidas ou, em menor número, manter o vício. Os programas acontecem no centro da cidade e na própria comunidade localizada no entorno dos centros de acolhimento.
Essa dinâmica é mais comum entre meninas. Meninos homossexuais também podem recorrer a essa estratégia. No caso dos meninos heterossexuais, a estratégia mais comum para conseguir algum dinheiro para bebidas ou drogas é a venda de balas nos semáforos do município.
Chamo a atenção para a diferença de compreensão entre meninos e meninas a respeito desse envolvimento. Por parte das meninas e dos meninos que trocam sexo ocasionalmente, há o entendimento de que não constitui nem prostituição nem exploração sexual.
Transcrevemos aqui a fala de um funcionário a respeito das adolescentes acolhidas, a qual ilustra a complexidade dessa questão:
“Pra elas, prostituição é isso… Eu tenho um ponto, eu tenho um lugar, eu tenho uma clientela, mas se eu vou até ali e faço sexo oral com o cidadão e em troca ele me dá cocaína, ou lança-perfume, ou até mesmo a maconha que eu quero, ela não entende como prostituição.”
Aliciamento e cativeiro
Já por parte dos profissionais entrevistados, o programa sexual ocasional é preocupante não apenas em função de possíveis consequências à saúde – gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), mas também em função de outros riscos que podem não estar sendo percebidos pelos(as) adolescentes.
Um exemplo que nos contaram foi o de um bar frequentado por várias meninas de uma das casas de acolhimento. Ali, elas faziam programas sexuais ocasionais e usavam drogas e bebidas. Quando chegava alguma menina nova no acolhimento, rapidamente era convidada por outra adolescente acolhida a ir ao bar, indicando o caminho para que pudesse ganhar algum dinheiro.
Na visão das meninas implicadas, tratava-se de apenas de ajudar uma nova colega. Na visão das profissionais, o convite configura um tipo de aliciamento.
Importante mencionar que adolescentes em acolhimento institucional têm o direito de sair sozinhos da casa. Apesar de monitorados, eles e elas usam o transporte público para ir à escola, podem se deslocar pelo bairro e até buscar formas de trabalho e emprego compatíveis com sua idade.
Os profissionais só descobriram que no tal bar aconteciam programas sexuais quando uma das adolescentes acolhidas solicitou a ajuda deles. Ela estava preocupada com o fato de que uma adolescente não acolhida pudesse estar sendo mantida em cativeiro no estabelecimento.
De fato, uma investigação confirmou que o dono do bar também mantinha celulares com coleções de fotos das meninas nuas e em poses pornográficas. Não há informações se essas fotos ficaram apenas armazenadas ou se circularam para outras pessoas (de forma paga ou não). A coordenação da Casa de Acolhimento formalizou uma denúncia na delegacia de polícia e, segundo nos foi passado, o local foi proibido de receber adolescentes.
Prevenção e enfrentamento da exploração sexual
O resumo desse caso e de outros narrados, que não puderam fazer parte deste curto relato, respalda resultados anteriores de trabalhos realizados pela coordenadora desta pesquisa. Assim, é possível afirmar que essa é uma dinâmica que não está restrita a meninas acolhidas, mas faz parte da vida de tantas outras que vivem em situações de precariedade social.
Os exemplos apresentados acima encaixam-se perfeitamente em uma das dinâmicas apresentadas no artigo Para além da exploração sexual e do tráfico, de Tatiana Savoia Landini e Lauren Zeytounlian, que aborda a troca do sexo por dinheiro, drogas ou álcool, por “livre escolha” e “aliciamento” pelo próprio grupo de pares.
Esta “livre escolha”, contudo, deve ser compreendida no contexto de vida dessas adolescentes, frequentemente atingidas pela marginalização social, pobreza, abuso ou negligência familiar prévia, desejo de consumo, drogadição, preconceito, dentre outros. A falta de perspectiva de trabalho e emprego decentes também impacta adolescentes pertencentes às classes de baixa renda.
Se, como mostramos, as meninas não veem a troca de sexo por drogas como uma forma de exploração sexual, investir apenas em leis mais rígidas contra aqueles que as exploram não é o suficiente.
Além de buscar conter o avanço crescente no uso de drogas por parte de adolescentes, a prevenção e o enfrentamento à violência e à exploração sexuais passam por garantir aos e às adolescentes seus direitos mais fundamentais – escolas de qualidade, expectativa de trabalho e emprego decentes, lazer etc. Passa também por políticas de igualdade de gênero e pela educação sexual em escolas e em aparelhos da rede de proteção e acolhimento.
Esta pesquisa foi desenvolvida com recursos do Edital Bem-Estar e Saúde Infantil, com apoio financeiro da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, no âmbito do Observatório da Democracia e dos Direitos da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp), e contou também com o apoio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).