Há dois anos, desenvolvo um projeto com policiais militares no Rio de Janeiro e sobre como eles observam questões sobre racismo e os usos e abusos da violência. A ideia do estudo tem sido buscar dados, a partir de descrições e análises construídas com eles, sobre os significados que atribuem às suas próprias ações e práticas. Busco, assim, interpretar suas representações sobre racismo, em especial no que concerne às suas práticas discursivas de controle social. Fazendo isso, espero atualizar a compreensão teórica acerca das possíveis dimensões do racismo e sua relação com a noção de hierarquia na polícia militar.
Visão sobre racismo entre os policiais
A pesquisa parte de uma constatação aparentemente simplória: a dimensão do racismo presente na sociedade não é ignorada pelos policiais. Eles têm conhecimento de que se trata de problemática crescente e obrigatória. No entanto, existe entre os policiais a percepção de que as mobilizações em torno do tema podem ser, muitas vezes, exageradas. Há entre os agentes uma naturalização da desigualdade social e jurídica, onde os negros – ou seja, pretos e pardos – constituem a maioria dos segmentos mais empobrecidos. Conforme o senso comum entre policiais, mortes e prisões de negros efetuadas pela polícia resultariam da desigualdade social que associa a criminalidade à pobreza.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, negros permanecem como as principais vítimas de mortes violentas por causa indeterminada no país, representando 79% de todos os registros. Nisso se incluem os latrocínios, que são crimes de motivação patrimonial. Os negros são maioria também entre os mortos por intervenções policiais (82%), e na população carcerária (68,7%).
O Rio de Janeiro reproduz esse padrão nacional. Assim, há pouca reflexão sobre os motivos pelos quais a maioria das pessoas abordadas, detidas ou mortas em função de seu ofício é constituída de pretos e pardos.
Os espaços urbanos mais degradados são o objeto primordial do controle policial. E se nesses lugares a maioria da população é preta e parda, isso se deve a aspectos históricos e sociais, tendo por base a exploração escravocrata e um processo abolicionista que avançou junto com o ideal de embranquecimento do país, como analisado por autores como Lilia Schwarcz ou Thomas Skidmore. Logo, os agentes da polícia não percebem os efeitos de suas ações como resultado de políticas racialmente concebidas pelo Estado. Os relatos dos participantes dessa minha pesquisa mostram que para eles a realidade de violência racial é meramente um resultado direto da desigualdade entre as classes sociais.
Do ponto de vista interno da corporação, a maioria dos policiais militares é constituída de pretos e pardos, muitos oriundos de localidades empobrecidas nas zonas norte e oeste do Rio, da Baixada Fluminense, entre outras. Para eles, isso comprovaria o caráter democrático e republicano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. O que se coaduna, aliás, com o discurso oficial da corporação em muitas ocasiões em que é acusada de discriminação racial ocorrida no exercício suas ações de controle e vigilância. E quando concordam com a existência de casos de discriminação dentro da corporação – mostrou a pesquisa -, a maioria dos policiais do gênero masculino afirma que essa discriminação nasce na relação entre hierarquia e disciplina, sendo essa em razão das relações travadas na corporação.
Relações de poder
Para parte dos policiais entrevistados, algumas manifestações que podem ser consideradas mobilizadoras de cunho racial estão impregnadas dentro dos processos de treinamento dos recrutas. Desta forma, os eventuais insultos e tratamentos degradantes que acontecem de forma rotineira nos processos de treinamentos têm muito mais um caráter “tático” do que uma natureza estratégica. Ou seja, estão direcionados muito mais para “atingir o psicológico” e testar a resistência dos agentes em formação do que incitar tratamento desigual em função da cor da pele.
Prova disso, segundo eles, é que essas ofensas deixam de ter lugar a partir do momento em que ocorre a “incorporação” na vida militar. A partir desse ponto, dizem alguns interlocutores, todos passam a ser “azuis”, em alusão à cor do uniforme. Outros, no entanto, podem corroborar essa tese acrescentando que há aqueles que são “azul escuro”, fazendo alusão às divisões de elite e as patentes oficiais, para distingui-las dos policiais da base da hierarquia.
As narrativas e representações apresentadas pelos policiais nesta pesquisa, bem como já visto em outros estudos do tipo, buscam conjugar as ações institucionais como desprovidas de uma intencionalidade racista. Seja contra a população de um modo geral, seja no relacionamento com os segmentos mais subalternos.
Porém, há uma concordância dominante de que os direitos são desiguais entre os praças – militares que ocupam postos inferiores da hierarquia, ou seja, soldados, sargentos e subtenentes – e o oficialato, que comumente é identificado como um agente explorador.
Questões de gênero
Um elemento que me parece inédito nesta pesquisa, considerando igualmente outras etnografias sobre o tema, diz respeito à perspectiva dos praças do gênero feminino – também chamadas de “as praças”, ou simplesmemte “fem”, no jargão da PM. Das narrativas das praças emergiu a percepção de que o racismo se coaduna fortemente com a dimensão de gênero, pois se combina com o assédio sexual ou moral.
Geralmente, o interesse sexual direcionado às mulheres negras nos quartéis e batalhões se manifesta por conta de características corporais que são geralmente vistas como positivas e atraentes: a cor da pele e o volume dos corpos, entre outros. No entanto, quando o interesse não é correspondido, entra em cena o assédio moral. Surgem as críticas aos cabelos crespos e volumosos “que não cabem dentro do quepe” – o que em tese contraria o regulamento disciplinar da corporação, por exemplo – bem como o uso do poder hierárquico para destinar a mulher negra assediada a serviços subalternos de limpeza ou de cozinha, o que normalmente não acontece com as praças brancas.
Impondo limites
A partir das interlocuções ao longo da pesquisa, que foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), tenho destacado em relevo o papel do Regime Disciplinar da Polícia Militar e a outorga de punições e castigos aos policiais de baixa patente. Nesse aspecto, a investigação passou a desnaturalizar a convivência dos policiais da PMERJ com esse mecanismo de controle.
Nas interlocuções com os entrevistados, bem como através das etnografias de orientandos meus, descobri que tal regulamento é mais conhecido entre os PMs como “R-Quero”. Ou seja, a utilização do regulamento é feita de forma discricionária e particularista pelos oficiais, sempre na perspectiva de cobrar obediência e impor limites às praças por supostas “faltas”.
Segundo os entrevistados, muitas vezes não há previsibilidade alguma na maneira como tal regramento é aplicado, cabendo ao policial saber lidar com os seus efeitos, de acordo com a ocasião. As punições tanto podem ensejar detenções, como mudanças nas escalas de serviço, seja em termos de horário ou localização, dependendo do interesse do oficial em impor limites ou mesmo causar algum dano.
Outro aspecto que vale interpretação dos dados colhidos aborda uma dimensão muito importante neste estudo e diz respeito ao Regime Adicional de Serviço (RAS), representado em conversas como “escravidão”.
O RAS no Rio de Janeiro é um programa que permite que policiais militares, civis, penais e bombeiros militares recebam remuneração por horas extras de trabalho. O governo do estado diz que tal iniciativa busca valorizar esses profissionais e reduzir a necessidade de “bicos” fora da corporação. Tal discurso, porém, obscurece o debate sobre salários justos que façam com que os policiais, a exemplo do que se observa em outras forças, não tenham que recorrer a ganhos extras. Para mais de um policial entrevistado, os salários pagos aos policiais para trabalharem em escalas que variam de 12 horas de serviço por 36 de folga, 24 por 48 ou 24 por 72 são cada vez mais defasados, o que os obriga a aderirem ao Regime Adicional.
O RAS é limitado a 120 horas mensais, que poderiam ser usadas para descanso e lazer. E cabe ao policial se inscrever para cobrir locais que possibilitem uma maior visibilidade da Polícia. Há um valor máximo a ser pago para esse tipo de serviço, livre de descontos para a seguridade social. O valor hoje é ligeiramente superior a dois salários-mínimos, sendo considerado irrisório para reposição do descanso necessário de uma atividade profissional de grande responsabilidade e causadora de elevado estresse. O regime adicional pode ser compulsório em situações de calamidade pública e grandes eventos, embora persista a representação de se tratar de um engajamento voluntário com gratificação de encargos especiais.
Minha análise, assim, tem buscado conjugar as características do trabalho policial, compreendendo aspectos como a ausência de direitos básicos que outras categoriais funcionais possuem e desfrutam.
Como resultado desse estudo, tenho refletido e me perguntado sobre quais os efeitos para a sociedade desse tratamento discriminatório dispensado por policiais, mas também contra eles: e que relação isso tem com o fato de que são constituídos, histórica e majoritariamente, por pretos e pardos? Acredito que ainda há muito por fazer, mas julgo que o caminho a seguir é muito interessante.