O jornalismo é o ato de contar a uma parte da sociedade o que a outra parte está fazendo. A célebre frase do jornalista Heródoto Barbeiro é certeira como um haikai, e, como o poema japonês, oferece muitas camadas, sendo a principal delas a contradição entre forma e objeto. Quer dizer: o fato da frase ser simples não torna o jornalismo uma atividade simples. Percebemos esse descompasso diariamente, pois vivemos num tempo em que explicar o mundo é um desafio quase impossível. E quando a realidade parece não fazer sentido, é comum culpar quem tenta nos explicá-la.
A alardeada perda de confiança pública no jornalismo, que estudamos na pesquisa “Índice de Credibilidade Jornalística: formulação de indicadores de fortalecimento do jornalismo para o combate aos ecossistemas de desinformação”, decorre um pouco dessa frustração: a aparente incapacidade de cumprir o que promete à sociedade. É verdade também que existam muitas outras razões para a erosão na credibilidade jornalística e que o fenômeno se diferencia geograficamente, mas é possível dizer que o jornalismo brasileiro esteja fazendo menos do que pode para se mostrar confiável ao seu público.
Quebra de confiança
A confiança é um elemento essencial para os relacionamentos sociais, e o jornalismo precisa que as pessoas confiem no que a mídia produz e publica. Sem isso, ele perde grande parte de seu valor e finalidade pública. O jornalismo, portanto, não é só um setor econômico, um ator político e uma atividade profissional, mas também um instrumento das sociedades para trocar ideias, compartilhar informações de interesse comum, revelar fatos desconhecidos e equalizar conhecimentos de mundo.
Nos últimos três séculos, pelo menos, alimentamos a imagem de que entendemos mais da nossa realidade a partir dos relatos que o jornalismo disponibiliza. Claro que o que vemos pode ter correspondência com o que acontece, mas também temos acesso a visões distorcidas, parciais, desequilibradas e até mentirosas. Quando percebemos que o jornalismo colabora com o espalhamento de versões que não são verdadeiras, há uma quebra da confiança depositada e uma natural ojeriza do que ele representa.
A corrosão da credibilidade no jornalismo brasileiro é resultado da percepção de que ele também desinforma, mas não só. O problema também está na incapacidade de profissionais e organizações ressaltarem porque são merecedoras da nossa confiança. Não basta que demonstrem preparo técnico, mas também credenciais morais, pois o pacto social estabelecido é também de natureza ética. O público espera que uma reportagem seja recheada de informações bem apuradas, que seja clara e entendível, e que o relato reflita a realidade porque os jornalistas se preocupam em só publicar o que confirmaram. Não conta só a capacidade técnica de narrar, mas também o compromisso de descobrir fatos novos e de se manter fiel aos acontecimentos. Também conta mostrar inequivocamente que a reportagem atende ao interesse público, dirigido à coletividade e não a grupos e centros de poder.
Um dos valores mais cultivados no jornalismo é a isenção, qualidade que nos permite fazer relatos desinteressados ou não atrelados a certos interesses. A ideia por trás disso é que a isenção permita ao jornalismo ser autônomo o suficiente para não ser atraído mortalmente para a órbita de interesses dos poderosos. É uma visão bonita e sedutora, mas também simplificadora da prática jornalística. No dia a dia, é mais difícil de se concretizar, mas manter a isenção no horizonte moral da profissão dá ao jornalismo uma vocação pública e um espírito social. Como a mulher de César no famoso ditado, não basta que o jornalismo seja honesto; ele tem que parecer honesto.
Ingredientes de credibilidade
Não é preciso ser especialista para saber que a honestidade é um traço marcante da integridade, e que a coragem é outro rótulo bem conhecido dela. Na semana passada, um influente âncora da CNN anunciou sua demissão ao vivo por discordar do alinhamento da emissora à administração de Donald Trump. “Nunca é um bom momento para se curvar a um tirano (…) Sempre acreditei que é função da imprensa responsabilizar o poder”, disse Jim Acosta, que exortou a audiência a não ceder a mentiras ou ao medo. “Segurem-se à verdade e à esperança”, disse ele.
Foi um gesto pessoal de coragem, que se soma a outros recentes, como dos jornalistas do The Washington Post que fizeram carta pública contra as decisões do dono do jornal que colocam em risco a integridade da publicação.
Coragem é importante para exercer o jornalismo, embora esteja em quantidades bem moderadas nas redações em todo o mundo. É desejável que ela não fique restrita a atitudes individuais, e que seja encarnada também por organizações jornalísticas, como fizeram o próprio The Washington Post no caso Watergate, The New York Times nos Pentágono Papers e The Intercept Brasil na série de publicações que ficou conhecida como Vaza Jato.
Um jornalismo confiável depende de coragem, mas também do compromisso com a ética e a transparência editorial. É necessário que meios e profissionais mostrem que não estão totalmente submissos às pressões dos poderosos, e que se guiam pelos interesses do seu público. É necessário que expliquem as motivações de suas reportagens, como obtiveram informações sensíveis e o que fizeram para confirmar a autenticidade do que estão divulgando.
É preciso também que o jornalismo seja corajoso o suficiente para francamente dizer quando há eventuais conflitos de interesse em suas matérias. E é igualmente importante que demonstre seus compromissos éticos, como se deu com a recente demissão de Rodrigo Bocardi por “descumprir normas éticas do Jornalismo da Globo”. Embora o grupo afirme não comentar casos de compliance – o que contradiz um compromisso maior com a transparência -, o gesto de desligar um profissional por não seguir um código ético fortalece a imagem de integridade corporativa, o que pode resultar em ganhos de credibilidade.
Historicamente, as organizações jornalísticas brasileiras são avessas a se abrir para o público. Falta transparência financeira e não sabemos quem banca o jornalismo; falta transparência política e não sabemos como grupos midiáticos se relacionam com partidos, autoridades e governos; falta transparência editorial e não nos contam como asseguram correção e honestidade e como se blindam de interferências nocivas ao interesse público.
O jornalismo nacional tem feito muito pouco para se mostrar confiável para o público, e isso é fatal numa época de crise de confiança nas instituições. Um desafio para o jornalismo brasileiro é convencer o público – por meio de gestos e atitudes concretas – de que é digno e merecedor dessa confiança. Parte desse esforço pode soar como autoelogio. Por isso, é preciso que o jornalismo tenha habilidade para não parecer que está fazendo propaganda dos próprios atos, e convencer as sociedades de que continua a ser útil, credível e necessário em tempos tão confusos.