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Plantas cognatas: conceito, usos e conservação das plantas que ‘parecem, mas não são’

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Plantas cognatas: conceito, usos e conservação das plantas que ‘parecem, mas não são’

Um projeto que oriento na Pós-graduação em Ciências Ambientais está estudando a estrutura populacional de uma palheira chamada xila. “Palheira” é como são chamadas as palmeiras usadas para fazer cobertura de casas na Amazônia. As folhas são trançadas em ‘panos’ – fileiras compridas que, empilhadas, funcionam como telhas, melhorando inclusive o conforto térmico.

A estrutura populacional busca saber como está a distribuição das fases de vida da espécie: plântulas, jovens e adultos. Se há muito mais plântulas do que jovens e adultos, a população pode ser considerada saudável, já ter muito mais adultos que jovens e plântulas, pode ser um indicativo de que algo está impactando negativamente a continuidade das populações de xila.

A xila tem o nome científico de Chelyocarpus ulei, e como todas as outras palmeiras pertence à família botânica Arecaceae. Assim como são Arecaceae o buriti e açaí, famosas no Brasil todo, o coco, pupunha e dendê – uma palmeira africana – até as menos conhecidas no Norte, como jacitara, ubins e marajás.

“Jeitão”

Quando são memorizados os traços característicos da família – o jeitão – fica fácil reconhecer uma palmeira na natureza, ou pelo menos saber que tal planta pode ser uma palmeira. Entretanto, dependendo a região, plantas de outras famílias botânicas, não Arecaceae, podem se assemelhar ao formato tradicional de “palmeira”, sendo popularmente também chamadas assim.

A xila tem uma folha palmada bem típica. Parece com as folhas novas do buriti, mas a face inferior da folha é de um verde acinzentado bem característico, uma dica preciosa para identificar a espécie no campo. Como ela, mesmo adulta, não passa de oito metros de altura, seus indivíduos fazem parte do que os ecólogos classificam de sub-bosque.

Ou seja, são todas as plantas que não crescem tanto quanto as grandes árvores que formam o dossel – o “teto” da floresta – de 30 a 40 metros. As espécies de sub-bosque vivem na sombra dessas grandes árvores, e muitas podem ser tão velhas quanto suas vizinhas.

Recentemente, comentei em uma palestra que a xila é uma espécie rara, e que no Brasil só existe no oeste do Acre. Essa espécie ocorre em florestas maduras e bem conservadas, por isso, está entre as muitas espécies que podem desaparecer se a crise climática mudar radicalmente seus habitats – uma ameaça tão grande quanto o desmatamento. Para minha surpresa, um aluno na plateia me contradisse. Ele afirmou que a xila ocorre em todo o Acre e não só no oeste, e que se reproduz muito bem, até rebrotando depois de cortada.

Semelhanças foliares entre espécies paracognatas: (A), (B) folhas e (C) inflorescência de Carludovica palmata (Cyclantaceae); (D), (E) folhas e (F) inflorescência de Chelyocarpus ulei (Arecaceae). Fotos do autor

Ouvindo o aluno, percebi que estávamos falando de plantas cognatas, ou seja, plantas que tem usos similares e se parecem muito, mas que são de grupos taxonômicos diferentes, como mostra a figura acima.

Dessa forma, na realidade, o aluno estava falando da espécie Carludovica palmata, da Família Cyclanthaceae, que tem folhas mesmo muito parecidas com as da xila. Essa Carludovica tem uma distribuição bem ampla na América tropical e, na América Central, é a matéria-prima dos famosos chapéus-do-panamá. Mostrei fotos das folhas das duas espécies para a plateia, mas, mesmo assim, o aluno insistiu por um bom tempo que as duas plantas eram a xila.

Um caso exemplar

A Carludovica de fato regenera depois de cortada, já para a xila não há evidências, em toda a sua área de distribuição, de que a planta rebrote após o corte. E sobre o uso sustentável das suas folhas – quantas podem ser colhidas sem causar um dano permanente à planta – ainda nada se sabe.

Dados preliminares, coletados em conversas informais com populações ribeirinhas, indicam que a xila já foi muito mais abundante e que no passado era muito usada como folha para cobertura de casas.

Esse caso exemplifica o conceito das plantas cognatas. Recentemente proposto, esse conceito está baseado no que Plínio O Velho originalmente cunhou como cognatum para denotar semelhança botânica. Plantas cognatas são plantas de espécies diferentes mas do mesmo gênero, morfologicamente semelhantes e usadas para os mesmos fins.

Já as paracognatas, como é o caso da xila e da Carludovica, são plantas de gêneros ou até famílias diferentes, mas que também compartilham a semelhança morfológica e de uso. Serem cognatas explica como espécies diferentes são confundidas, e tomadas como mesma matéria-prima de um produto final.

Devido às particularidades ecológicas de cada uma, problemas aparecem quando usos similares geram impactos diferentes às espécies. O uso, ao não considerar a distribuição geográfica restrita de uma das espécies, ou menor número de indivíduos na natureza, pode consequentemente afetar de forma adversa a estrutura populacional de cada espécie. Na outra ponta, o consumidor final pode não perceber que está contribuindo de forma indireta para a diminuição da população de uma cognata mais rara, por exemplo.

A raridade e dificuldade de encontrar a xila na floresta, pode explicar a diminuição do seu uso para cobertura de casas. No oeste do Acre ainda há outras espécies de palmeiras cognatas como o jaci, inajá e ouricuri que seguem fornecendo folhas para a produção de telhado.

No entanto, essas palmeiras são muitas vezes colhidas de forma errada ao se derrubarem seus únicos caules que nunca rebrotam. O declínio nas populações de palheiras e a dificuldade cada vez maior de encontrar indivíduos tem sido notado por ribeirinhos e indígenas, e é frequentemente citado como a “crise das palheiras”.

O caso-açaí

Também das palmeiras vem outro exemplo que vale a pena ser citado nesse contexto. O caso-açaí, como está sendo chamado, exemplifica a complexa relação paradoxal entre eficiência econômica e sustentabilidade ecológica. Esse caso envolve duas espécies cognatas do gênero Euterpe: o açaí-de-touceira (Euterpe oleracea), nativo do leste da Amazônia, e o açaí-solteiro (Euterpe precatoria), nativo do oeste da Amazônia.

Grandes plantios monoculturais do acaí-de-touceira ou açaí-do-Pará, têm afetado negativamente a biodiversidade nativa. No Acre está cada vez mais comum a polpa derivada exclusivamente do açaí-de-touceira. Sendo que, sem rotulagem adequada, o consumidor fica sem saber qual espécie está sendo utilizada.

Embora os sistemas monoculturais aumentem a produção, eles frequentemente impactam negativamente a biodiversidade local. Além disso, enfraquecem o conhecimento ecológico incorporado nas práticas tradicionais, ou seja, o tradicional consumo do açaí-solteiro nativo do Acre.

A substituição, mesmo que não intencional, de uma planta cognata pela outra, pode tanto apagar as distinções no entendimento popular, quanto gerar repercussões ecológicas sérias, como a superexploração ou o declínio de populações de espécies raras ou vulneráveis.

Portanto, a confusão inicial da rara xila com a comum Carludovica, vai muito além de um simples equívoco de identificação. Ela ilustra a importância e a aplicabilidade do conceito de plantas cognatas. Compreender as semelhanças e, principalmente, as críticas diferenças ecológicas por trás delas, é o primeiro passo para evitar que o uso tradicional e a exploração comercial, mesmo que bem-intencionados, levem ao declínio silencioso de espécies vulneráveis.

Integrar o conhecimento das plantas cognatas às políticas de manejo, ao comércio e às práticas cotidianas é interessante para garantir que a riqueza da diversidade de espécies da floresta possa ser utilizada de forma verdadeiramente sustentável, preservando tanto o ecossistema quanto os saberes tradicionais a ele associados.

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