A Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu em seu texto original que o Congresso Nacional deveria instituir, por meio de lei, o Plano Nacional de Educação (PNE) com duração plurianual. Determinou ainda que o plano deveria articular o desenvolvimento do ensino em seus níveis básico e superior integrando as diversas ações do poder público.
Nos termos da Carta Constitucional, o PNE deveria prever ações que conduzissem à promoção da ciência e da tecnologia e viabilizassem a formação para o trabalho, objetivos típicos da educação superior. Ao promulgar a Carta Magna em 5 de outubro de 1988, o constituinte atribuiu ao próprio Congresso Nacional a tarefa de elaborar um plano setorial, que, dentre outras ações, fosse capaz de fortalecer a universidade pública como peça estratégica para o desenvolvimento nacional do país, assim como já defendia o professor e ex-ministro Darcy Ribeiro.
Ainda assim, o primeiro PNE só veio a ser estabelecido pela Lei nº 10.172/2001, mais de uma década após o comando constitucional. A lei de 2001 definiu que o plano teria vigência até 8 de janeiro de 2011. Encerrado esse período, o país ficou sem um plano nacional de educação por mais de três anos, até que o novo PNE fosse instituído pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. O simples fato de o Congresso Nacional ter permitido que o Brasil permanecesse sem essa peça estrutural por mais de três anos impõe a reflexão sobre o quanto o poder público, e a sociedade brasileira, levam a sério aquele que deveria ser o mais importante documento de planejamento estratégico educacional do país.
Metas do PNE vigente eram ambiciosas e não foram atingidas
O segundo PNE, instituído pela Lei 13.005/2014, deveria ter duração decenal (2014/2024), entretanto, mais uma vez, o Brasil chegou ao fim do período de vigência da Lei sem ter aprovado um novo plano, e, em julho de 2024, por força da Lei 14.934/2024, o PNE 2014/2024 teve sua vigência prorrogada até 31 de dezembro de 2025. Prorrogar um planejamento estratégico sem debater amplamente suas metas é algo que a boa prática administrativa jamais admitiria, mas isto é um outro debate.
O fato é que chegamos ao fim do segundo PNE sem atingir as metas estabelecidas no marco normativo. No que concerne à oferta de educação superior, foco deste ensaio, o PNE vigente estabeleceu metas ambiciosas, como elevar a taxa líquida de escolarização (TLE) da população de 18 a 24 anos para 33% e assegurar que 40% das novas matrículas ocorram em instituições públicas.
No entanto, o país não atingiu nenhuma das duas metas.
Segundo dados do INEP, entre 2014 (linha de base) e 2023 (último dado disponível), a TLE registrou um discreto crescimento (21,2% para 25,9%), resultado 21,5% inferior ao previsto. A meta relacionada à participação das instituições públicas no crescimento da oferta teve resultado ainda pior: considerando toda a série histórica (2014-2022), sua participação nas novas matrículas nunca ultrapassou 12,7% a cada ano, e, em 2022, último ano com dados disponíveis, as IES públicas foram responsáveis por apenas 7,4% das novas vagas, valor 81,5% abaixo da meta estabelecida.
Para o novo PNE, a proposta contida no documento referência da Conferência Nacional da Educação (CONAES) indicou metas ainda mais audaciosas. A proposta estabelece como meta o atingimento de taxa líquida de matrícula de 40% e participação efetiva do segmento público acima de 60% nas matrículas. Entretanto, considerando o histórico recente, impõe-se uma reflexão inevitável: de que adianta estabelecer metas se não são estabelecidos mecanismos institucionais que garantam as condições objetivas de financiamento para a materialização de tais metas?
Orçamento das universidades oscila a cada mudança no Executivo
Neste sentido, um dos primeiros pontos a serem enfrentados é a instabilidade do orçamento de nossas universidades federais, tema sob o qual o PNE é silente. Hoje, o orçamento das universidades federais oscila a cada mudança no Executivo Federal, comprometendo o planejamento institucional e a continuidade das políticas de expansão da oferta pública, com impactos sobre o projeto de democratização da educação superior previsto no PNE.
Vamos aos dados.
Dado que o pagamento de salários e encargos sociais são despesas obrigatórias, optou-se, neste breve ensaio, por investigar a instabilidade do orçamento das universidades federais a partir da análise da evolução dos gastos com despesas correntes (energia, água, contratos, assistência estudantil e outros) e investimentos em infraestrutura e material permanente.
Dados divulgados pelo Centro de Estudos SoU_Ciência, que trabalha com informações a partir dos anos 2000 e utiliza valores corrigidos pela inflação, mostram as seguintes variações no orçamento liquidado com despesas correntes: entre 2000 e 2002, durante o governo FHC, as universidades federais liquidaram, em média, R$ 3,794 milhões/ano em despesas correntes; no governo Dilma, entre 2011 e 2015, esse valor médio subiu para R$ 9,467 milhões/ano; já no governo Bolsonaro (2019 a 2022), os valores médios liquidados com despesas correntes apresentaram uma redução de 21,8%, mesmo com o aumento no número de matrículas.
O mesmo comportamento é identificado quando se analisam os gastos com investimento em infraestrutura e material permanente. Em 2002 (governo FHC), essas despesas somaram R$ 0,215 bilhões, correspondendo a 0,7% do orçamento total. Em 2014 (governo Dilma), chegaram a R$ 1,703 bilhões, ou 2,7% do total. Já em 2021 (governo Bolsonaro), foram liquidados R$ 0,143 bilhões, menor valor da série histórica, representando 0,1% do orçamento.
Como é possível gerir uma estrutura tão complexa e tão relevante para o país diante de um cenário de tamanha instabilidade orçamentária?
Incluir no texto do PNE a nobre intenção de “…garantir recurso no orçamento…” é sabidamente insuficiente para que se garantam de fato os recursos no orçamento!
É preciso indicar fontes, propor vinculações e estabelecer metodologias de cálculo. O Brasil precisa usar o PNE para estabelecer com clareza qual Educação Superior deseja oferecer a seus cidadãos, definir o custo para a sua oferta com qualidade e garantir os recursos necessários para a sua execução, somente assim sairemos da “lógica do recurso disponível”, que varia com a definição de prioridades de cada novo chefe do poder executivo.
Há muitos anos a Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) vem construindo um modelo de financiamento que busca vincular o orçamento de Despesas Correntes e Investimento ao orçamento de pessoal, mais estável, de forma complementar aos mecanismos baseados em custeio/output. Acreditamos tratar-se de um importante ponto de partida.
Em outro giro, um artigo publicado por Amaral, Silva Júnior e Salles demonstra que a atual fragilidade orçamentária das UFs tem impacto sobre a autonomia universitária. Diante do cenário de restrições, as UFs acabam buscando recursos extraorçamentários como emendas parlamentares de Termos de Execução Descentralizada (TED) que tornam-se cada vez mais relevantes para a sobrevivência das UFs.
País precisa de plano com metas realistas, prazos exequíveis e financiamento compatível
O Brasil precisa de um plano educacional cujos objetivos transcendam o campo das promessas bem-intencionadas. Um plano com metas realistas, prazos exequíveis e financiamento compatível com a dimensão dos desafios lançados à nação. A proteção do orçamento das universidades federais não é mero detalhe técnico, mas condição essencial para que o novo PNE se consolide como uma verdadeira política de Estado.
Sem financiamento adequado, sem compromissos firmes e sem proteção às instituições públicas, o plano corre o risco de se tornar mais um documento inócuo, cheio de boas intenções, mas incapaz de produzir mudanças reais na sociedade brasileira.