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Pode o Brasil acionar os EUA na Corte Internacional de Justiça por ingerência em seus assuntos internos?

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Pode o Brasil acionar os EUA na Corte Internacional de Justiça por ingerência em seus assuntos internos?

Nas mãos da nova administração dos Estados Unidos da América, as tarifas aduaneiras foram transformadas em armas de guerra comercial e de intimidação. Mais de 90 países foram atingidos pelas medidas americanas e surpreendidos por uma escalada de tensões comerciais. O Brasil não foi poupado. Um dos motivos alegados pelo Presidente Donald Trump para o aumento das tarifas teria sido pressionar o Poder Judiciário brasileiro no atual julgamento do ex-Presidente Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim como trombeteou o próprio Presidente Trump, o julgamento em questão seria, segundo ele, um exemplo de “perseguição, intimidação, assédio, censura e processo politicamente motivado”. Para reforçar a intimidação, sanções extraterritoriais foram adotadas contra o Ministro Alexandre de Moraes, com base em uma lei americana — a agora infame Lei Magnitsky. Tais medidas integram uma linha de atuação internacional que se aproxima do bullying diplomático, prática que o Presidente americano tem dirigido a outros Estados e chefes de Estado.

Em resposta, o vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, declarou que o caso poderia ser levado ao Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio, com o objetivo de contestar a legalidade das tarifas americanas. No entanto, para além do contencioso puramente comercial, levanta-se uma questão de maior densidade jurídica: seria possível também submeter a conduta americana à apreciação da Corte Internacional de Justiça (CIJ), sob a alegação de ingerência nos assuntos internos do Brasil?

Essa questão será analisada em duas partes. Primeiramente, discutirá se a CIJ teria competência para julgar o caso. Em seguida, examinar-se-á se a conduta americana viola o direito internacional.

A competência da Corte Internacional de Justiça para o caso

No direito internacional, para que um caso seja levado à apreciação da CIJ, os Estados envolvidos no litígio devem reconhecer a competência da Corte, conforme previsto no artigo 36 do seu Estatuto. Trata-se de uma particularidade do sistema jurídico internacional, e esse reconhecimento pode ocorrer de três formas principais: (i) por meio de uma declaração unilateral de aceitação da jurisdição obrigatória da Corte; (ii) por um acordo entre as partes em um caso concreto; ou (iii) por cláusulas específicas de competência inseridas em tratados internacionais entre as partes.

Nesse último caso, destaca-se o artigo 31 do Tratado Americano de Soluções Pacíficas de 1948, também conhecido como Pacto de Bogotá, cujos signatários incluem o Brasil e os Estados Unidos da América.

Esse tratado reconhece a jurisdição compulsória da CIJ para os seguintes casos: “a) a interpretação de tratados; b) qualquer questão de Direito Internacional; c) a existência de qualquer fato que, se comprovado, configure violação de uma obrigação internacional; e d) a natureza ou extensão da reparação em virtude do desrespeito a uma obrigação internacional”.

Contudo, embora o Brasil tenha ratificado o Pacto de Bogotá, os Estados Unidos não o fizeram. Além disso, os Estados Unidos fizeram um reserva à jurisdição da CIJ. Com base nela, o país “não se compromete, no caso de conflito em que se considere parte agravada, a submeter à Corte Internacional de Justiça qualquer controvérsia que não seja considerada de competência da própria Corte”.

Trata-se de uma limitação autoimposta, mas que, em termos jurídicos, não é intransponível. Ainda que os Estados Unidos não reconheçam a jurisdição compulsória da CIJ, eles podem consentir com a jurisdição da Corte caso a caso — como já ocorreu em outras situações. Por isso, não há, em princípio, um impedimento absoluto à apreciação do caso pela Corte Internacional de Justiça. Se a CIJ se declarar competente, caberá a ela examinar o mérito da controvérsia e avaliar a legalidade da conduta americana à luz do direito internacional.

A legalidade da conduta americana

As medidas adotadas pelos Estados Unidos da América têm como objetivo declarado pressionar o Brasil e seu Poder Judiciário a modificar ou mesmo interromper o julgamento do ex-Presidente Jair Bolsonaro. Sanções e medidas comerciais foram impostas a partir de Washington com o intuito evidente de interferir na atuação das instituições judiciais brasileiras. Trata-se de uma postura de intimidação abertamente assumida pelo governo americano.

No direito internacional, tal conduta configura ingerência em assuntos internos de outro Estado, o que viola os princípios fundamentais da soberania e da independência dos poderes políticos e judiciais nacionais. O artigo 2(7) da Carta das Nações Unidas é categórico ao afirmar que nenhum Estado pode intervir “em assuntos que dependem essencialmente da jurisdição de qualquer Estado”.

Além disso, a Resolução 31/91 da Assembleia Geral da ONU, adotada em 1976, reforça esse entendimento nos parágrafos 3 e 4: “3. Denuncia qualquer forma de interferência, manifesta ou dissimulada, direta ou indireta (…) por parte de um Estado ou grupo de Estados, bem como qualquer modalidade de intervenção de natureza militar, política, econômica ou outra nos assuntos internos ou externos de outros Estados (…). 4. Condena, nesse sentido, quaisquer métodos de coerção, subversão ou difamação, sejam eles diretos, sutis ou tecnicamente sofisticados, que tenham como objetivo alterar a ordem política, social ou econômica de outros Estados, ou comprometer a estabilidade de governos que busquem maior autonomia econômica em relação a influências externas.”

As medidas norte-americanas, portanto, buscam coagir o Brasil a alterar o curso de um procedimento jurisdicional sobre o qual apenas o próprio Estado brasileiro detém de forma exclusiva e soberana — acima de tudo! — competência decisória.

A jurisprudência da própria Corte Internacional de Justiça confirma essa leitura. Em seu julgamento de 1986 no caso Atividades Militares e Paramilitares na e contra a Nicarágua, envolvendo a Nicarágua e os Estados Unidos, a Corte concluiu que o princípio da não intervenção garante a todo Estado soberano o direito de conduzir livremente os seus assuntos internos, sem ingerência externa.

Há uma intenção declarada, por parte dos Estados Unidos, de ameaçar e coagir o Brasil por meio de medidas comerciais e sancionatórias. Diante disso, o Estado brasileiro tem fundamentos jurídicos sólidos para contestar a legalidade dessas ações perante a Corte Internacional de Justiça.

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