Poucas pessoas já cruzaram com uma cobra-de-duas-cabeças. Mas mesmo vivendo sempre enterradas, essas criaturas não escapam da influência do clima: é ele que decide onde elas podem viver.
Mesmo se parecendo muito com as cobras, as cobras-de-duas-cabeças, ou anfisbênias, são lagartos sem pernas que passam a maior parte da vida escavando túneis no subsolo, como as minhocas.
São chamadas assim por terem a cauda arredondada, mais ou menos no mesmo formato da cabeça.
Elas vivem escondidas e quase nunca aparecem à superfície, tornando-se um dos grupos de animais vertebrados mais misteriosos do planeta. Sua vida subterrânea torna cada encontro raro e cada registro científico extremamente valioso.
Duas espécies intrigaram cientistas da UFJF, UFC e UFPB: Amphisbaena bolivica e Amphisbaena camura. Elas ocorrem na América do Sul (no Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina) e são tão parecidas que muitas vezes só podem ser diferenciadas por pequenos detalhes dos seus corpos. Isso levanta uma questão fundamental: o que determina onde cada uma delas vive?
O senso comum sugeriria que a resposta estaria no solo, afinal são animais subterrâneos. Mas nosso estudo, recém-publicado na revista Ecology and Evolution, mostra que a realidade é outra: é o clima, e não o tipo de solo, que decide onde cada espécie consegue sobreviver.
O desafio de estudar animais subterrâneos
Por viverem escondidas, as cobras-de-duas-cabeças são notoriamente difíceis de observar. Pouco se sabe sobre seu comportamento, alimentação ou reprodução. Esses animais escavam intensamente, mantendo a maior parte do corpo abaixo da superfície, o que dificulta qualquer observação direta. Como resultado, existem enormes brechas no conhecimento sobre sua distribuição geográfica e ecologia.
Cada registro coletado, portanto, é precioso. Para entender como as duas espécies se distribuem na natureza, reunimos dados de museus, artigos científicos e observações confirmadas por especialistas em plataformas de ciência cidadã, como o iNaturalist. Ao todo, compilamos mais de 250 ocorrências, o que permitiu uma análise robusta, mesmo com os desafios de estudar animais subterrâneos.
Em seguida, aplicamos modelos de nicho ecológico, que relacionam registros de ocorrência com variáveis ambientais, como clima e tipo de solo. Esses modelos ajudam a prever em quais áreas as condições são mais favoráveis para cada espécie, mesmo em locais onde não houve registros diretos. Além disso, permitem comparar a importância relativa de diferentes fatores ambientais na definição da distribuição das espécies.
Testando clima contra solo
A expectativa inicial era que o solo fosse o principal determinante. Afinal, cavar e se locomover debaixo da terra depende da textura, composição e umidade do terreno. No entanto, os resultados mostraram que outro fator se destacou: o clima.
As análises indicaram que variáveis como a temperatura, a amplitude térmica diária e a isotermalidade (um indicador da estabilidade da temperatura ao longo do ano) têm muito mais peso do que o solo para explicar a distribuição das espécies. Isso mostra que, mesmo enterradas, as cobras-de-duas-cabeças estão intimamente ligadas às condições climáticas da superfície.
O que descobrimos?
Amphisbaena bolivica ocorre principalmente em áreas secas e sazonais, como o Chaco, onde verões escaldantes podem chegar a quase 50°C e invernos registram temperaturas negativas.
Amphisbaena camura prefere ambientes mais úmidos e com maior variação de temperatura entre dia e noite, como o Pantanal e o Chaco úmido.
Surpreendentemente, o solo não explicou as diferenças: ambas vivem em terrenos semelhantes em termos de areia, argila e nutrientes.
Mesmo vivendo sob a terra, as cobras-de-duas-cabeças não estão isoladas da influência do clima de superfície. Essa descoberta desafia a ideia de que animais subterrâneos estariam protegidos das variações climáticas.
Por que isso importa?
Esses resultados têm implicações importantes. Primeiro, revelam que animais subterrâneos, tradicionalmente vistos como protegidos das variações de temperatura, são altamente dependentes do clima. A temperatura e a umidade externas continuam determinando onde podem viver e prosperar.
Segundo, os achados ajudam a prever o impacto das mudanças climáticas. Se o clima já é o principal fator que separa A. bolivica e A. camura, alterações futuras de temperatura e precipitação podem redesenhar completamente seus limites de distribuição, ameaçando populações locais e possivelmente reduzindo áreas de ocorrência.
Terceiro, a pesquisa contribui para a conservação da biodiversidade subterrânea. As cobras-de-duas-cabeças desempenham papéis discretos, mas essenciais: controlam populações de invertebrados, ajudam a aerar o solo e participam da dinâmica de nutrientes. Proteger esses animais significa preservar processos invisíveis, mas fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas.
Um olhar além da superfície
O caso de A. bolivica e A. camura traz reflexões mais amplas sobre animais fossoriais. A ideia de que espécies subterrâneas estão “a salvo” do clima é enganosa. Isso lembra que a biodiversidade é sensível a mudanças em múltiplos níveis, mesmo para espécies que parecem isoladas do ambiente externo.
Além disso, compreender como espécies próximas evoluem para ocupar diferentes ambientes ajuda a esclarecer princípios gerais da ecologia.
O futuro das cobras-de-duas-cabeças
A principal lição é que não basta olhar para o solo que escavam. Para conservar esses animais e prever seu futuro, é preciso observar o clima que os envolve.
Num mundo de rápida transformação climática, pesquisas como esta são essenciais para antecipar cenários e desenvolver estratégias de proteção. Se já é difícil encontrar cobras-de-duas-cabeças hoje, pode ser ainda mais difícil no futuro, se não considerarmos sua vulnerabilidade às mudanças do ambiente.
Mesmo vivendo escondidos, esses animais não estão imunes às mudanças climáticas globais.