A Venezuela constantemente mobiliza a opinião pública brasileira por seus problemas internos e repercussões na relação com o Brasil. Em um debate sempre envolto em polarização, desvelar a importância do país com quem compartilhamos mais de dois mil quilômetros de fronteira requer a compreensão do que está em jogo.
Há um conjunto de elementos a serem conhecidos. Um primeiro passo é compreender o chamado excepcionalismo venezuelano, uma visão nacional de que o país teria características históricas, políticas e sociais únicas, o que justificaria soluções diferenciadas para questões internas e externas. No cenário atual, esse conceito abrange a ideia de que a Venezuela oferece um modelo alternativo aos padrões globais. Historicamente, essa autopercepção nacional está associada a Simón Bolívar (1783-1830), principal líder das guerras de independência da América do Sul e que levou o país à libertação do jugo espanhol.
Outro elemento é material. No final do século XIX, foi descoberto o primeiro poço petroleiro em uma fazenda no estado de Táchira. A transição “do arado ao petróleo” fez com que a Venezuela se descolasse do destino de boa parte da América Latina – a agroexportação. O petróleo modificou brutalmente toda a sua base produtiva, com o abandono da agricultura (até mesmo a de subsistência) e a aceleração a urbanização. A consolidação de uma oligarquia petroleira no século XX moldou um modelo democrático liberal bipartidário, semelhante ao norte-americano, que vigorou de 1958 a 1998.
Além da inspiração política, a vinda de empresas petroleiras dos Estados Unidos criou laços econômicos, comerciais e culturais entre os países. Uma boa ilustração é o fato de que o esporte nacional na Venezuela é o baseball, e não o futebol. Se no plano simbólico as ideias de Bolívar alimentavam o imaginário de um povo revolucionário, o petróleo os conectou ao modo de vida americano e distanciou do subdesenvolvimento latino-americano.
A chegada do chavismo
Com o rentismo petroleiro, a economia nacional se tornou suscetível a fenômenos fora de seu controle, como as variações do mercado internacional. Quando o preço do barril do petróleo está em alta, a Venezuela prospera. Se o valor despenca, o país mergulha em crises profundas.
Em 1999, Hugo Chávez assumiu o governo da Venezuela e deu início à Revolução Bolivariana (ou chavismo), movimento que marcou profundamente a política do país. Chávez se inspirou em Bolívar para combinar ideias nacionalistas ao denominado Socialismo do Século XXI. Teve início aí o traço mais controverso da política venezuelana. Bolívar, até então visto de forma histórica e acrítica, torna-se objeto de controvérsia e polarização. A renda petroleira foi redirecionada a políticas sociais e as relações com os Estados Unidos entraram em um espiral de tensões.
A Revolução Bolivariana completou 25 anos à frente do poder político em 2024, alcançando o apogeu na primeira década do século XXI, com prosperidade econômica e social. Entretanto, desde 2013 é marcada por altos níveis de polarização política, derretimento das melhorias sociais e dificuldades materiais.
As relações com o Brasil
Ao se transformar em potência petroleira no século XX, a Venezuela se voltou totalmente ao Caribe e à América do Norte, priorizando essas parcerias em detrimento dos países sul-americanos. A maior proximidade foi sendo construída no período pré-chavista, entre as décadas de 1970 e 2000, com resultados mais concretos nas presidências de Rafael Caldera (1994-1999) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Quando o presidente Lula assumiu o poder, em janeiro de 2003, já haviam sido estabelecidas uma Comissão Binacional de Alto Nível (1994) e a linha de interconexão elétrica de Guri para abastecer o estado de Roraima (2001).
A despeito das muitas diferenças entre os projetos lulista e chavista, havia afinidades em suas agendas internacionais. Uma delas era aproveitar as complementariedades entre os mercados. A aposta na integração regional era um meio para diminuir a dependência comercial dos Estados Unidos, especialmente para a Venezuela.
Enquanto as empresas brasileiras supriam parte da demanda do crescente mercado consumidor venezuelano, puxada pelas melhorias sociais e bonança petroleira dos anos 2000, vislumbrava-se as vantagens em ter uma potência energética como parceira bilateral e no Mercosul. O resultado foi uma balança comercial superavitária para o Brasil, beneficiando o capital privado que estava se internacionalizando.
A vulnerável estrutura econômica venezuelana colapsou com a queda abrupta do preço do petróleo em 2014. A polarização interna também agravou o quadro geral, com aumento da violência política e a impossibilidade de conciliação institucional entre os principais grupos. Paralelamente ao declínio econômico e social do vizinho, o Brasil passava por rupturas importantes entre 2016 e 2019.
Após amornar a parceria com a ex-presidente Dilma, Michel Temer elevou o tom contra Caracas, a sede do governo. Já o ex-presidente Bolsonaro rompeu relações com o regime de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, e chegou a reconhecer o presidente interino Juan Guaidó, da oposição antichavista. Ao mesmo em que as afinidades estratégicas internacionais entre os países foram esmaecendo, a dependência da importação da eletricidade venezuelana para suprir Roraima era uma realidade concreta. Com a interrupção das relações diplomáticas, o estado precisou recorrer às termelétricas – mais custosas financeira e ambientalmente.
A encruzilhada brasileira
A crise migratória da Venezuela tem sido, porém, a evidência mais concreta do quanto a fratura político-diplomática entre os países foi infrutífera, sendo também o Brasil um dos destinos mais procurados pelos imigrantes e refugiados do país vizinho.
Quando adensou suas relações com a Venezuela, sob Fernando Henrique e Lula, o Brasil tinha pretensões de liderar a América do Sul. Esse objetivo se perdeu com as turbulências internas, mas tenta ser retomado desde 2023. O lulismo e parte do Itamaraty convergem na ideia de que, para se afirmar globalmente, o Brasil precisa ser reconhecido como líder regional. Nesse contexto, a Venezuela e a postura apaziguadora adotada por nossa diplomacia representam grandes desafios.
A ruptura promovida por Bolsonaro, que interrompeu a compra de energia elétrica para Roraima, demonstrou o quanto a cooperação com o país vizinho era vantajosa. Ademais, o intenso fluxo de pessoas na fronteira requer o mínimo de articulação entre as autoridades locais e nacionais.
Há mais dimensões. O país é alvo de centenas de sanções contra sua economia e sua inserção no cenário mundial retrocedeu. A aspiração dos Estados Unidos e seus aliados ocidentais é derrubar o regime de Maduro, apontado como o grande responsável pela debacle venezuelana. A justificativa para a adoção das medidas coercitivas seriam as violações aos Direitos Humanos e as rupturas democráticas perpetradas pelo chavismo. Em contrapartida, o chavismo fortaleceu seus laços com Rússia, China, Irã e Turquia, bem como com Cuba e Nicarágua no âmbito latino-americano.
Hoje, a sociedade venezuelana encontra-se fraturada entre dois projetos antagônicos, levando a um nível de violência política sem precedentes. Nas controversas eleições de 2024, que a oposição afirmou ter ganhado, a permanência de Maduro foi confirmada. Embora tenha outras parcerias, Caracas apostava na retomada da exploração petroleira por companhias estadunidenses para potencializar a recuperação econômica. Mas o retorno de Donald Trump à Casa Branca retirou alguns abrandamentos comerciais concedidos a empresas como a Chevron em sua operação na Venezuela.
A perspectiva de aumento das restrições econômicas e de manutenção do regime político fazem da Venezuela um epicentro de instabilidade regional. Diante dessa preocupação, há muitos questionamentos sobre qual papel o Brasil poderia exercer para conter ou até solucionar o “problema venezuelano”. Nesse contexto, pode parecer implícita a ideia de apoiar a oposição antichavista em sua empreitada política. Porém, é necessário considerar o cenário global.
A proposta de uma intervenção armada, defendida pela direita colombiana – e acalentada pela direita venezuelana capitaneada por María Corina Machado – teria efeitos e duração imprevisíveis.
Acrescente-se a esse caldo em ebulição a disputa entre Estados Unidos, Rússia e China, presentes na Venezuela. Para piorar, a perspectiva de um confronto direto com a Guiana pelo território de Essequibo afrontaria também interesses do Reino Unido. Diante dessas variáveis, é de se questionar se estaríamos preparados para um conflito sem precedentes na América do Sul e de lidar com as suas consequências econômicas, sociais, políticas, migratórias e humanitárias.
Sem fazer um balanço que leve em conta aspectos sociológicos, políticos, econômicos, internacionais e geopolíticos, qualquer debate ou ação improvisada sobre a relação com a Venezuela soa irresponsável. Por ora, o governo Lula tem sido bastante cauteloso, mas nada garante que os ventos passem a soprar em outra direção a partir das eleições presidenciais em 2026.