A cada semana, novas ferramentas automatizadas entram no mercado brasileiro, impactando hábitos de consumo, modelos de negócio e práticas políticas, com destaque, hoje, para IAs que sintetizam vídeos e manipulam imagens com realismo impressionante. Esse fluxo incessante ocorre em uma nova fase de dependência tecnológica, marcada pela hegemonia de polos como Estados Unidos e China, pela centralização algorítmica e pela penetração das plataformas globais em todas as esferas da vida social.
Enquanto isso, o debate público continua muito longe dos verdadeiros desafios. O senso comum, capturado por narrativas sensacionalistas, oscila entre tecnofilia e tecnofobia, sob o signo do determinismo tecnológico. As inovações aparecem como inevitáveis e intrinsecamente desejáveis, ocultando conflitos de interesse, impactos assimétricos e a possibilidade de influência social.
A emergência de riscos inéditos de intervenções externas, como a perspectiva de um cenário eleitoral em 2026 dominado pela manipulação de vídeos de IA evidencia que a política tecnológica é também disputa por soberania, justiça social e autonomia informacional. A recente retaliação tarifária imposta por Trump ao Brasil, em defesa das Big Techs e do político Jair Bolsonaro agrega o mesmo sentido.
Este artigo defende que o Brasil precisa formar uma massa crítica tecnopolítica, capaz de compreender, disputar e deliberar sobre os rumos da inovação. Do contrário, o país seguirá vulnerável à captura corporativa de seu futuro digital.
Barreiras ao debate sobre tecnologia
A formação dessa consciência tecnopolítica no Brasil enfrenta barreiras econômicas, informacionais e institucionais. A barreira econômica se expressa na hegemonia das Big Techs e na inserção subordinada do país nas cadeias globais. A informacional refere-se à concentração da mediação do debate público em plataformas que filtram as mensagens por mecanismos opacos. A institucional, à fragilidade das políticas reguladoras que assegurem transparência e soberania.
Essa urgência se confirma tanto no diagnóstico empírico quanto na reflexão teórica. O estudo “Contratos, Códigos e Controle” (2025) revela como a dependência digital se enraizou no próprio Estado brasileiro, com bilhões em contratos com big techs estrangeiras em apenas um ano. Como advertia Celso Furtado em “Criatividade e dependência na civilização industrial ”, o acesso à tecnologia não rompe com a dependência; é preciso criar projetos autônomos de inovação, capazes de recuperar a criatividade e orientar o desenvolvimento segundo interesses sociais próprios.
A concentração do poder informacional nas mãos de plataformas e conglomerados restringe a pluralidade de vozes e filtra o debate por mecanismos algorítmicos opacos. Essa assimetria, somada aos ganhos econômicos com conteúdos criminosos, motivou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Art. 19 do Marco Civil, que reconheceu que as plataformas não são neutras, mas agentes que moldam o espaço público digital.
O que chega ao público pela grande mídia é um discurso tecnodeterminista, no qual a inovação é apresentada como fato consumado. Relatórios de prestígio internacional, divulgados sem questionamento, anunciam o desaparecimento e surgimento de profissões como se fossem previsões naturais, ocultando os interesses e escolhas subjacentes a esses prognósticos. Como uma mensagem subliminar (abordada no filme They Live, de 1988, com OBEY), esse discurso opera uma naturalização de imposições tecnológicas, onde o único horizonte possível é a adaptação.
Esse discurso é reforçado por estratégias de marketing que alimentam o fetichismo tecnológico com a ideia de tecnologias como entidades autônomas, desvinculadas de seus contextos sociais. Casos como declarações de engenheiros do Google e da Meta sobre IAs com “consciência” foram amplificados pela mídia sem contraponto, ofuscando os dilemas sociotécnicos, sobre quem decide, com que finalidade, sob qual governança.
Some-se a isso a dificuldade recorrente de atores acadêmicos e técnicos em traduzir seu conhecimento para uma linguagem acessível ao público geral, mantendo a ciência distante da sociedade.
A dependência também se expressa na vulnerabilidade externa. Em 2024, Elon Musk desafiou decisões do STF e teve a plataforma X bloqueada no Brasil. Agora, Trump impôs tarifas de 50% ao país, em represália à regulação digital. Esses episódios mostram como a autonomia tecnológica pode ser estorvada por pressões combinadas de corporações e potências estrangeiras.
A modelagem social das tecnologias
Vivemos uma transição entre paradigmas tecnoeconômicos. O modelo de um ecossistema digital baseado na descentralização e no bem comum, encontra-se em estágio avançado de saturação, ou “enshittificação”, nas palavras do professor e autor de escritor (entre outras atividades) Cory Doctorow. Isto é, um processo de degradação sistemática dos serviços digitais, à medida que as plataformas priorizam rentabilidade sobre valor social, convertendo usuários em alvos passivos de manipulação algorítmica.
O criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, já em 2010 alertava para a substituição gradual de um ciberespaço aberto por ambientes fechados, controlados por corporações e voltados à extração de dados e atenção. O que ele identificava como risco tornou-se o traço dominante, sinalizando a senescência do paradigma da internet como espaço de deliberação cidadã. Nesse contexto, emergem tecnologias como a inteligência artificial, desenvolvidas por essas mesmas corporações, como vetores de um novo regime de acumulação, reproduzindo lógicas de concentração e controle.
A ideia de que a tecnologia segue um curso autônomo é uma persistente armadilha do nosso tempo. As tecnologias não são neutras nem inevitáveis, mas moldadas por decisões sociais, políticas e econômicas. Para além do controle técnico, o que está em disputa é a capacidade democrática de decidir que tecnologias queremos, para quem e com que finalidade.
Para isso, é fundamental fortalecer uma consciência tecnopolítica cidadã, capaz de mobilizar a sociedade para disputar os rumos da inovação. Sem ela, a transição será conduzida por oligarquias digitais que deslocam as decisões para fora do espaço público.
Visão tecnopolítica para defesa democrática
Ampliar a massa crítica da sociedade é essencial para qualquer projeto democrático de regulação tecnológica. Isso envolve promover o pensamento crítico, a apropriação cidadã do conhecimento e o reconhecimento de que tecnologias são produtos de escolhas sociais.
Uma frente relevante é a promoção da literacia digital crítica, por meio de programas de ensino que, além das habilidades técnicas, integrem conteúdos sobre ética da tecnologia, direitos digitais e sustentabilidade, articulando saberes técnicos e humanísticos. Essa abordagem pode ser incorporada aos currículos da educação básica, do ensino superior e pós-graduação, alcançando todas as formações profissionais, uma vez que as tecnologias atravessam os mais diversos campos da vida social.
Nesse horizonte, destaca-se a estratégia de antecipação proposta por Hans Jonas: a heurística do medo. Trata-se de uma pedagogia da responsabilidade, que propõe imaginar cenários de risco associados às inovações tecnológicas, indo além do alarmismo para formar sensibilidades críticas e criativas frente aos desafios colocados.
Também são relevantes iniciativas culturais e midiáticas que promovam reflexão crítica, como podcasts, documentários e coletivos de tecnologia empenhados em criar espaços de inovação cidadã, ampliando repertórios e formas de ação coletiva.
Outra frente é a construção de canais entre o conhecimento especializado e o debate público, capazes de traduzir o saber técnico-científico em linguagem acessível para ampliar sua circulação. Nesse contexto, destaca-se a importância do financiamento a pesquisas interdisciplinares sobre os impactos sociais da tecnologia e à divulgação científica voltada ao interesse público.
O Brasil atravessa um momento decisivo. A transição entre paradigmas tecnológicos intensifica a dependência externa e expõe a fragilidade institucional diante de pressões geopolíticas. A retaliação tarifária de Trump, em defesa das Big Techs, deixou claro que a soberania digital e regulatória do país está em jogo.
Formar uma massa crítica tecnopolítica é uma estratégia de defesa democrática. Trata-se de criar as condições para que a sociedade compreenda, dispute e delibere coletivamente os rumos da inovação. O encantamento tecnofílico e a paralisia tecnofóbica não podem substituir o discernimento coletivo. Um futuro digital justo e soberano exige participação informada e o engajamento cidadão.