Recentemente, o vídeo de um canguru criado por inteligência artificial, segurando um cartão de embarque com uma expressão de calma, viralizou – e não por acaso. O canguru não era real, mas por um instante, muitos quiseram que fosse.
Como pesquisadora que há mais de uma década estuda o impacto dos animais na saúde mental, não me surpreende os motivos pelos quais essa cena alcançou tanta visibilidade. Para além de sua natureza divertida, o vídeo mobiliza algo profundo em nós: o desejo de encontrar, nos animais, estabilidade emocional, acolhimento e compreensão.
Embora vários estudos de fato apontem o poder terapêutico de animais, pesquisadores alertam que essa tendência de idealiza-los como figuras afetivamente disponíveis e emocionalmente reguladoras pode trazer riscos tanto para as pessoas quanto para os animais.
Explorar o que as pesquisas dizem sobre porque nos comove tanto ver um animal “emocionalmente estável” pode nos ajudar a compreender por que os animais muitas vezes espelham desejos humanos profundos tais como acolhimento, companhia e estabilidade. Essa discussão é essencial para abrir conversas sobre saúde mental, vínculos e os limites da humanização de outras espécies.
O que essa cena revela sobre nós
Em tempos de hiperexposição, solidão e fragilidade emocional, a imagem do “animal que entende” pode ser reconfortante, mas também revela muito sobre o que estamos buscando.
Considerando estudos sobre o papel dos animais na saúde física e psicológica das pessoas, o impacto do vídeo que viralizou pode ser explicado de várias formas. Um dos motivos está ligado ao aspecto divertido da cena, mas também ao fato que assistir vídeos de animais emocionalmente estáveis traz a sensação de calma e conforto. Além disso, outros aspectos são relevantes e ajudam a entender o impacto emocional do vídeo:
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Regulação emocional confiável – Muitos estudos apontam que as pessoas se voltam aos animais em busca de fontes de previsibilidade afetiva. Eles são percebidos como seres que não julgam, não rejeitam, e respondem de forma consistente. Por exemplo, acariciar um animal pode reduzir estresse e induzir a liberação de ocitocina. Em outras palavras, a presença do animal muitas vezes ajuda a acalmar e conter. Nesse sentido, a imagem de um canguru sereno no aeroporto, ainda que inusitada e criada por inteligência artificial foi vista por muitos como algo possível e real.
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Conexão emocional incondicional e sem conflitos – em um mundo cada vez mais complexo, no qual muitas exigências emocionais sobrecarregam, os animais representam um tipo de vínculo sem cobranças explicitas, o que reforça a ideia de que eles são um refúgio seguro. Por exemplo, alguns estudos salientam que os animais usam primeiramente linguagem não verbal, o que pode facilitar a sensação de conexão emocional calma, silenciosa e sem sobrecarga cognitiva e emocional.
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Animais como espelho do “eu ideal” – Alguns pesquisadores argumentam que o antropomorfismo, que se refere à atribuição de características humanas aos animais pode funcionar como uma forma de expressar necessidades humanas através dos animais. A imagem do canguru sereno diante de uma situação estressante traz embutida esse ideal de perfeição e autocontrole emocional que pode ser difícil de alcançar em uma sociedade com constantes demandas. Por exemplo, alguns pesquisadores apontam que vivemos a era do “desempenho” constante. Tal cenário gera sofrimento psíquico crônico pois a cobrança para lidar sozinho com as próprias emoções nos isola.
A lógica por trás da comoção
Para muitos a imagem de um animal calmo, silencioso e paciente num ambiente estressante como um aeroporto evoca uma fantasia emocional de estabilidade e controle afetivo. Estudos recentessobre interação entre pessoas e animais mostram que tendemos a atribuir esse tipo de característica humana aos animais, sobretudo quando nos sentimos sobrecarregados. Isso pode ser considerado não apenas uma projeção, mas também uma forma de simbolização afetiva. Em um estudo recente, conduzido por mim com mais de 130 participantes, percepções antropocêntricas também demonstraram ter um papel central na percepção de sincronia emocional entre tutores e cães.
Nesse sentido, o canguru humanizado com o bilhete na mão pode ser visto como algo que ajuda a criar um senso de conexão emocional. Ele representa aquilo que muitas vezes falta nas relações humanas: presença constante que acolhe sem exigir e que é capaz de conter e acolher emocionalmente em momentos de crise e descontrole.
É como se dissesse: “Enquanto tudo está caótico, esse ser tranquilo me mostra que ainda existe calma no mundo.”
E, nesse sentido, o vídeo viral reflete muito sobre nossa necessidade coletiva de um outro emocionalmente estável, silencioso e disponível.
O que fica depois do clique
O canguru empático, ainda que não seja real, nos ajuda a refletir sobre a tendência crescente ao antropomorfismo. Atribuir características humanas aos animais carrega riscos pois ao esperar comportamentos humanos deles, corremos o risco de ignorar suas necessidades reais. Por outro lado, há uma base sólida de evidências indicando que animais de companhia podem, sim, oferecer suporte emocional significativo. Eles ajudam a reduzir a solidão, ampliam o senso de conexão emocional e funcionam, em muitos contextos, como reguladores afetivos.
É importante refletir sobre esse paradoxo: o desejo por uma conexão profunda e incondicional, muitas vezes projetado nos animais, e a importância de reconhecer os limites éticos e emocionais dessa relação. Tal reflexão pode nos ajudar a compreender como a figura do “animal que entende” pode preencher uma lacuna afetiva e o que esse fenômeno pode nos dizer sobre o momento que vivemos.