Rio de Janeiro, 2025. De joelhos diante do filho morto, uma mãe negra ordena: “Removam o lençol”. Ela exige que o mundo encare a maior chacina da história do Brasil, nos complexos do Alemão e da Penha.
Mississippi, 1955. Mamie Till-Mobley enterra o filho, Emmett Till, de 14 anos, linchado por dois homens brancos, que o deixaram desfigurado. Mamie insistiu em um caixão aberto. “Deixe o mundo ver o que fizeram ao meu filho”, disse.
Uma linha invisível conecta essas duas mães negras, separadas por sete décadas e um continente. Nesse vão temporal, uma pergunta ecoa: O que vem depois do olhar do mundo? Em 29 de outubro de 2025, o Brasil acordou com as imagens brutais do maior massacre patrocinado pelo Estado de sua história, no Complexo do Alemão e da Penha, com mais de 120 pessoas mortas. Fotos e vídeos de dezenas de corpos – majoritariamente negros, todos pobres – inundaram as redes sociais e a mídia.
A reação de parte da sociedade diante das imagens da chacina foi celebratória. “Tenho as fotos dos corpos caso alguém queira ver”, comentou uma leitora no perfil do Instagram do Portal Metrópoles. Outro respondeu: “Vi as imagens e foi tão satisfatório”.
Circulação de imagens de brutalidade podem reforçar dominação branca
Há décadas, com a popularização dos meios de comunicação de massa visuais, estuda-se a ideia de que documentar a brutalidade racial seria um escudo protetor, uma evidência incontestável na argumentação pela igualdade.
Há quem defenda que a exposição da violência pode promover justiça. Por outro lado, pesquisas indicam que a circulação em massa de imagens de brutalidade racial, desde a escravidão e os linchamentos, banaliza o sofrimento, normaliza-o e, com isso, reforça as estruturas de dominação branca.
A existência de uma imagem explícita de violência, por si só, não garante que a mídia humanizará a vítima. Frequentemente, vê-se o oposto: narrativas que reforçam o racismo para justificar a brutalidade.
A mídia hegemônica funciona como uma ponte que associa a negritude à criminalidade, criando e sustentando um sistema de representação que influencia a forma como a sociedade enxerga os indivíduos negros. A superexposição do negro como violento gera “emoções negativas” em relação a essa população, enfraquecendo, por exemplo, o apoio a protestos por igualdade racial.
A violência contra corpos negros como espetáculo
Desde sua fundação, a imprensa hegemônica brasileira trata a violência contra corpos negros como espetáculo, como mostra a tese de doutorado “Do controle à libertação: uma genealogia de imagens de violência racial na mídia brasileira”.
O estudo olhou para o passado para entender o presente. No século XIX, pessoas negras eram retratadas na mídia quase exclusivamente no contexto da escravidão, com suas culturas e humanidade apagadas. Em 1866, a Semana Ilustrada, uma das publicações pioneiras do jornalismo com imagens no país, já se referia a um linchamento como um “espetáculo” que acontecia em uma praça pública, com público a ser entretido pela brutalidade.
Anos depois, em 1876, a Revista Illustrada, um dos periódicos mais relevantes daquele tempo, apresentava o desenho de dois homens negros, pendurados, inertes em postes, uma clara evocação de um linchamento. Nesta representação, o terror serve ao propósito do entretenimento. A colocação casual da cena ao lado de cartuns humorísticos normalizava a violência racial. A ausência de contexto ou de crítica sobre os assassinatos apresentava a antinegritude como uma história de terror inerente ao Brasil.
Nas primeiras décadas do século XX, nasceram as revistas policiais, como Vida Policial e o Archivo Vermelho, que, aos poucos, substituíram as ilustrações por fotografias, comercializando versões mais realistas da violência contra corpos negros como entretenimento. Essas publicações retratavam homens negros como “inimigos criminosos”, “bestiais” e “nascidos para o crime”. Exibiam seus corpos inertes como troféus desalmados, numa prática clara de vigilância e punição.
Na edição de número quatro da revista Vida Policial, de 1925, lê-se: “As fotografias são impressas para que a população sempre se lembre deles [criminosos]”. A justificativa acompanha um artigo que detalha a prisão de 21 homens, a maioria negros, acusados de roubo. O texto os descreve em termos desumanizadores: “São ladrões que, com a maior naturalidade e cinismo, invadem lares familiares e roubam tudo o que podem.”
A revista ainda transfere a responsabilidade punitiva das autoridades para os civis, argumentando: “Não importa o quão eficaz seja a polícia, cada família deve praticar sua própria profilaxia, policiando a si mesma, mantendo-se alerta e vigilante contra os malfeitores.” O artigo lista explicitamente os nomes dos suspeitos, incluindo pseudônimos de conotação racial, “Luiz Sujo”, um estereótipo degradante comum no Brasil do início do século XX.
Programas de TV há muito associam negritude à criminalidade
Puxar esse fio histórico leva aos programas policiais de TV do século XXI, como o “Brasil Urgente”, de José Luiz Datena, obcecado em associar negritude à criminalidade. O pesquisador Francisco Rüdiger analisa como o noticiário policial contribuiu para a normalização da violência racial no Brasil, especialmente após a ascensão desses programas na TV. Ele os descreve como uma “marcha fúnebre” que entorpece os brasileiros. A tristeza, o mal-estar e a resignação da sociedade diante do absurdo da violência estatal estão embutidos no jornalismo policial.
Uma ampla gama de estudos sobre o jornalismo policial brasileiro destaca como os programas mais populares criticam os altos índices de criminalidade do país, frequentemente focando em uma suposta baixa letalidade das forças policiais, mesmo que as imagens de violência racial em massa nessas mesmas mídias digam o contrário.
Rüdiger situa esses programas de TV no panorama político do Brasil antes e depois da ditadura, destacando uma mudança nas prioridades da mídia. Conforme observa o pesquisador, a mídia brasileira se rendeu progressivamente às forças de mercado e ao sensacionalismo, transformando o país em um “circo de horrores transmitido por satélite”.
Dessensibilização ganha novos contornos com as redes sociais
No século XXI, essa dessensibilização ganha novos contornos com as redes sociais. O conteúdo que antes estava confinado à TV e aos meios impressos agora cabe na palma da mão, inundando smartphones pelas redes sociais e outros aplicativos.
Representações racistas da violência estatal e policial se espalham, retratando policiais como heróis e os “criminosos” como corpos desviantes. A consequência é o espalhamento do pânico moral e o reforço do apoio de parte da população a essa violência.
A dessensibilização às imagens violentas contra corpos negros é um processo gradual. Começa com sementes de ideologia racista plantadas que crescem e mutam ao longo das gerações. A forma evolui – das caricaturas às fotos policiais e aos vídeos virais –, mas a raiz venenosa permanece: a ligação simbólica persistente entre negritude, violência e punitivismo.
A lição, como Audre Lorde e Malcolm X ensinam, é que a libertação do povo negro é uma luta de complexidade infinita — travada tanto contra as forças externas de desumanização quanto contra os valores opressivos internalizados. Um conflito secular, frequentemente reduzido ao espetáculo midiático.
Romper simbolicamente com essas representações depende da circulação de narrativas alternativas e do fortalecimento da mídia independente e negra. Enquanto a grande mídia reproduzia seu padrão histórico ao noticiar a morte de “60 bandidos” e lucrar com a barbárie – atuando como “afiador de faca”, como aponta Fabiana Moraes –, a realidade era reconstruída de outra forma. Moradores e representantes de veículos como o Voz das Comunidades resgatavam os corpos. Uma cena que, como observou o ativista Raull Santiago, “entra para a história de terror do Brasil”.



 
			 
                                
                             

 
		 
		 
		 
		
