Ad image

Posição do Itamaraty sobre o conflito Israel-Irã intensificou a crise política no Brasil

11 Leitura mínima
Posição do Itamaraty sobre o conflito Israel-Irã intensificou a crise política no Brasil

As respostas do Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, aos ataques de Israel e, posteriormente, dos EUA às usinas de enriquecimento de urânio do Irã, nas últimas semanas, aprofundam a crise política que o Brasil ainda atravessa.

Após os insanos e, por que não dizer, bizarros discursos e desmandos do antigo governo, que romperam importantes tradições de continuidade e adaptabilidade e esgarçaram valores diplomáticos construídos desde os tempos de Rio Branco, isolando o Brasil na arena global, é compreensível que o atual governo e o Itamaraty busquem reconstruir a imagem do país perante o mundo. É natural também que tenham urgência em fazê-lo, por razões políticas e econômicas. Porém, no complexo e instável contexto nacional e internacional que enfrentamos, todo cuidado é pouco. A repercussão política das notas emitidas pelo Itamaraty após os ataques ao Irã revela um quadro mais frágil do que se imagina: acirra-se a polarização, aumenta o desgaste do governo e, consequentemente, empobrece o debate democrático.

A nova vulnerabilidade da diplomacia brasileira

Na difícil empreitada de reintegrar o Brasil à cena internacional, muita coisa conta – e não apenas o cenário político e econômico externo. Há hoje inúmeros fatores que vão muito além daqueles existentes no dois mandatos anteriores de Lula, entre 2003 e 2010. Se naquela época a intervenção presidencial na diplomacia brasileira permitiu que ela ainda conciliasse com êxito os paradoxos da adaptabilidade e continuidade no âmbito dos valores diplomáticos, o que colocou o Brasil num papel de mediador das crescentes tensões entre o Oriente e o Ocidente – vale lembrar o acordo nuclear entre Turquia e Irã mediado pelo Brasil em 2010 – hoje, a situação é diferente.

O desafio agora está em conciliar esses mesmos aspectos da tradição diplomática brasileira diante de um cenário bastante delicado. Internamente, o país está altamente polarizado e o debate público no Brasil sofre um drástico esvaziamento. Já no cenário global, o Brasil tenta superar o desgaste diplomático sofrido no governo Bolsonaro e sair do isolamento político justamente num momento em que a geopolítica mundial se reconfigura em velocidade recorde.

Além disso, a sociedade global enfrenta uma polarização política que lembra os tempos da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Tudo isso vem acompanhado por outro fator importante: há hoje uma sociedade civil global fortemente engajada – como produtora, disseminadora e consumidora – de conteúdos digitais, muitos deles de cunho falso ou enganoso. É uma conjuntura, portanto, em que o Brasil busca se reerguer internacionalmente num contexto permeado por uma extrema volatilidade política, econômica e discursiva que se dá em escala mundial.

Enquanto o projeto de trazer o Brasil de volta à cena política internacional do atual governo parece priorizar, por um lado, uma política externa que se afasta dos EUA, primeiro, para não se alinhar a Donald Trump em meio à guerra comercial; segundo, para romper com a subserviência ideológica aos EUA que marcou a gestão Bolsonaro. Em sua outra frente de ação diplomática, o Brasil, em sua condição de potência média, busca estreitar os laços com outros países, principalmente os BRICS, justamente para frear a influência norte-americana nos países do chamado Sul Global.

Essas diretrizes fazem sentido do ponto de vista da política externa, mas partem do pressuposto de que a diplomacia brasileira ainda estaria blindada do contexto político interno. A partir de Bolsonaro, a chancelaria brasileira ganhou um tom excessivamente político-ideológico. O Itamaraty, que até pouco tempo atrás parecia, aos olhos da opinião pública e até mesmo entre estudiosos, uma instituição relativamente isolada da sociedade, com influência modesta nos debates internos, passou a ter peso político inédito. Sua imagem de autonomia, neutralidade e seu papel historicamente respeitado como mediador internacional se alteraram rapidamente perante a opinião pública.

A qualquer manifestação oficial do Ministério, a sociedade se pergunta: “Afinal, de que lado está o Itamaraty?” — e assim aumentam-se as chances reais de notas diplomáticas servirem como peças importantes em discursos políticos internos, seja à direita ou à esquerda, nutrindo, muitas vezes, discussões que pouco acrescentam à democracia e ao retorno do Brasil às suas articulações internacionais.

Uma nota, muitas leituras

Ao emitir nota condenando “com veemência” os ataques ao Irã, o peso político interno de tal declaração logo mostrou as caras, retroalimentando discursos e pressões polarizantes nos mais diversos setores da sociedade, mobilizando especialmente a direita. Parte da oposição cobrou do Itamaraty menos “omissão” quanto à parceria Irã-Hamas. Outros veículos foram mais incisivos, afirmando que o governo Lula teria escolhido o lado iraniano na guerra entre Irã e Israel. Nesse meio-tempo, as famigeradas fábricas de fake news espalharam nas redes sociais que Lula, na reunião do G7, havia declarado apoio ao Irã.

O sentimento de que Lula apoia ditaduras não é recente, mas vem se intensificando nos últimos meses. Em 2024, com a entrada do Irã nos BRICS, a aproximação entre Irã e Brasil se fortaleceu, gerando tensões na relação Brasil-Israel e levando parte da sociedade a cobrar do governo um posicionamento sobre a teocracia iraniana; regime este que persegue, tortura e mata minorias sexuais, religiosas e dissidentes políticos. Para críticos, a aproximação com o Irã parece destoar das pautas eleitorais do PT. Para a direita mais radical, alinhada a Trump, Israel e Bolsonaro, foi um claro aceno de apoio à ditadura aiatolá, nada tendo a ver com questões do direito internacional.

Essa cisão ideológica ganha ainda mais força porque Lula, também pressionado por parte da classe artística e intelectual, endureceu as críticas ao genocídio em Gaza. Ao compará-lo ao Holocausto, recebeu uma enxurrada de críticas e desencadeou uma crise diplomática importante com Israel.

Na última semana, o presidente não se manifestou sobre a sanção do projeto de lei que cria o Dia da Amizade Brasil-Israel – projeto este, inclusive, concebido pelo governo Dilma. Vencido o prazo, a lei foi promulgada por Davi Alcolumbre. O episódio afastou ainda mais o governo de Israel. E, quanto mais o governo se indispõe com Israel, mais legitimidade ganha o discurso polarizante de que seu governo apoia a ditadura iraniana, aprofundando a polarização política do país e gerando mais desgaste ao governo.

Enquanto críticas à violência em Gaza aproximam o Brasil da Europa, o mesmo não ocorre na questão da Ucrânia. Não houve críticas “veementes” do governo ou do Itamaraty à Rússia pela invasão. Em maio, Lula foi duramente criticado no Brasil por sua visita à Rússia para o Celebration Day, sendo praticamente o único chefe de Estado de uma democracia ocidental a participar pessoalmente do evento.

No início do mês, quando Lula recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Paris-VIII, o maior jornal de esquerda da França criticou o presidente, condenando sua presença no desfile de Putin ao lado de líderes autoritários e questionando a homenagem da universidade.

O que resta para o Itamaraty?

Nesse cenário tão tortuoso, outros pontos importantes presentes na nota do Itamaraty sobre a guerra entre Israel e Irã foram ignorados. A nota, mais adiante, afirmou que o Brasil “rejeita com firmeza qualquer forma de proliferação nuclear, especialmente em regiões marcadas por instabilidade geopolítica, como o Oriente Médio”. Reiterou-se, ainda, que o melhor caminho para a resolução do conflito seria pela via diplomática, além de condenar os mútuos ataques entre os dois países, que poderiam ferir civis e causar danos a infraestruturas na região. Nesse momento permeado por tantos excessos e abusos do discurso como via de distinção de tribos político-ideológicas, foi o repúdio aos ataques contra o Irã que dominou o noticiário e o debate público.

E, infelizmente, assim deve continuar enquanto o debate político brasileiro não for direcionado para discussões mais substantivas sobre leis, políticas públicas e medidas que beneficiem o maior número de cidadãos, e não apenas bases eleitorais específicas. Até lá, cabe ao Itamaraty trabalhar mais estrategicamente sobre como se expressar e agir, pensando em formas concretas de conciliar sua adaptabilidade ao governo sem comprometer-se totalmente com dicotomias de “pró ou contra”, que pouco ajudam o país a retomar o prestígio internacional.

Uma boa saída talvez seja liderar discussões sobre o papel do Brasil na relação com a China: sairemos da dependência americana para nos tornarmos dependentes do capital chinês? Ou em articular soluções para o problema do crime organizado transnacional,que hoje assombra o país.

Qualquer que seja o primeiro assunto tratado pelo Itamaraty, nele pode estar a chave para superar a guerra ideológica interna e, enfim, trazer de volta a reconhecida capacidade da diplomacia brasileira de articular soluções para o Brasil e retomar seu papel único de mediador na arena global – em vez de continuar servindo, ainda que involuntariamente, como combustível que alimenta a polarização e intensifica a crise generalizada que o país atravessa.

Compartilhe este artigo
Sair da versão mobile