Desde a origem das favelas no Rio de Janeiro, moradores e moradoras desses territórios lutam para garantir acesso a serviços básicos e direitos fundamentais. Ao longo de mais de um século, a resistência e a organização política coletiva possibilitaram conquistas importantes – da regularização fundiária ao acesso a serviços como água, energia, esgoto à luta contra o genocídio operado pelas políticas públicas de segurança.
Nas últimas décadas, vimos uma diversificação das formas de resistência e novas maneiras de fazer política nos territórios. Em especial, cresceu o papel da produção de conhecimento e memória como ferramentas centrais na organização das favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Esse tema foi discutido em um ciclo de debates promovido por instituições como o Dicionário de Favelas Marielle Franco (Fiocruz), o Bonde (IESP-Uerj), o Grupo Casa (Uerj), a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), o Instituto Raízes em Movimento, entre outras.
Quem produz conhecimento e memória nas favelas?
A partir dos anos 2000, diversas organizações e coletivos passaram a produzir, de forma mais estratégica e pluralizada, conhecimentos e memórias a partir das favelas. Esses processos envolvem discussões sobre identidade, pertencimento, a relação com universidades e a incidência política. Isso contribui para entender porque conhecimento e memória se tornaram centrais nas lutas contemporâneas.
Recentemente, publicamos em um dos capítulos do livro intitulado “A Cidade Fala: memórias, linguagens e resistência”, algumas análises sobre essa temática. Apontamos que o fortalecimento desse debate também está ligado à expansão de organizações de favelas e “ONGs de dentro” — ou seja, formadas por moradores dos próprios territórios. Essas iniciativas expressam a “vontade de memória”, de patrimônio e de museus nas favelas. Elas resgatam vozes, histórias, identidades e celebram os legados locais.
Para nós, a construção de uma memória coletiva faz parte de um processo de positivação da identidade favelada e está diretamente relacionada à luta pelo direito à cidade e pelo direito à favela.
Hoje, muitos projetos usam a memória como ferramenta de luta política. Como afirmou Marcela Toledo, mestre pela Uerj e pesquisadora do Instituto Decodifica, antigo LabJaca, “o direito à vida está totalmente relacionado com a questão da memória”, que precisa ser “viva, envolvente e potente”. E pode se manifestar por meio de museus, livros, documentários, grafites, placas ou fotografias.
Fransérgio Goulart, historiador e coordenador executivo da Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial, reforça que “o dispositivo de memória é multifacetado”, podendo ser uma forma de denúncia, de enfrentamento ao Estado ou de preservação de um legado.
Para ele, os corpos são a materialidade da memória, e cita como exemplo as mães de vítimas da violência de Estado: “Se o Estado produz a violação, ele não garante e não produz memória”. Ao levarem os rostos de seus filhos estampados nas camisas e ocuparem a rua, essas mães estão produzindo memória viva e política.
A memória, nesse contexto, ressignifica dores e orienta novas lutas. Leandro Castro, do Rocinha Resiste e do Museu Sankofa, refletindo sobre a Rocinha, afirma que políticas de memória são fundamentais para que a população negra compreenda as raízes históricas da violência que ainda marca sua existência.
As políticas de apagamento fazem parte de um projeto colonial que construiu uma narrativa única de mundo — branca, eurocentrada, cis-heteronormativa. Nesse sentido, produzir e disputar memória é também reivindicar o direito de existir fora desse modelo.
Outro ponto central é a deslegitimação histórica da fala de moradores de favelas nos debates públicos. Por isso, produzir pesquisas e dados é uma estratégia fundamental de enfrentamento.
A disputa pelos dados
Como destacou o sociólogo e coordenador do Instituto Raízes em Movimento, Alan Brum, a produção de dados é uma questão de estratégia local. Durante muito tempo, moradores de favelas ouviram do poder público que “não era possível fazer tecnicamente” intervenções em seus territórios. Esse discurso preconceituoso serviu como provocação, impulsionando os próprios moradores a produzirem conhecimento sobre sua realidade.
Segundo Brum, é preciso dominar as linguagens técnicas e acadêmicas para que as favelas possam “colocar na história” a sua própria narrativa. O artista e pesquisador Hugo Oliveira, coordenador da Galeria Providência, resumiu bem esse movimento: “A sua cabeça pensa de onde seu pé pisa”. Para ele, a diferença está no próprio morador ser pesquisador — alguém com relações reais de confiança e pertencimento.
“Hoje a gente está podendo se ver nas pesquisas. Isso muda tudo. Se uma equipe técnica qualquer subisse a Providência durante a pandemia, não ia dar certo. O que fez a diferença foi o fato de ser o Hugo”.
Relação favela e universidade
Uma das tensões recorrentes nas falas de pesquisadores é a desconfiança que enfrentam quando produzem conhecimento nas favelas. Como citou a coordenadora executiva da Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial e doutoranda em sociologia pelo IESP-Uerj, Giselle Florentino, as perguntas mais ouvidas são: “Qual a metodologia?”, “É censo?”, “É amostragem?”, “De onde vêm essas informações?”. A resposta da Iniciativa é clara: os dados vêm dos moradores dos territórios.
Nos debates, Fransérgio ainda afirmou que “onde nos cortam, nós brotamos (…). Nossa existência e nossos corpos são os nossos próprios conhecimentos”. Ele destaca a diversidade de epistemologias que surgem “de becos, vielas, terreiros, aldeias, encruzilhadas” — que não são inferiores à produção acadêmica, apenas diferentes.
A universidade, mesmo com políticas de cotas e processos de resistência, ainda é um espaço de privilégio, frequentado pelas elites políticas e econômicas. Como disse Fransérgio, é um espaço de reprodução social e hierárquica do saber.
A crítica à academia é histórica. Muitos pesquisadores fazem suas pesquisas nas favelas e não retornam com os resultados, um processo de “vampirização”. Apesar disso, há experiências positivas de parceria. O Instituto Raízes em Movimento, por exemplo, criou o Centro de Produção de Memória no Complexo do Alemão (Cepedoca), a partir de relações com a universidade.
O Instituto Decodifica também reconhece a importância da universidade, mesmo apontando seu conservadorismo epistemológico. Como disse uma coordenadora de pesquisa do grupo: “a gente não abandona esse espaço, porque é onde conseguimos mobilizar instrumentos para enriquecer nosso trabalho”. A presença de sujeitos periféricos nesses espaços — como alunos ou palestrantes — é essencial para romper com a hierarquização do conhecimento e fortalecer as pesquisas periféricas.
O Fórum Favela-Universidade é outro exemplo importante. Desde 2017, a Fiocruz, a UFRJ e as organizações de Manguinhos e da Maré realizam encontros para discutir a aproximação entre universidade e favela. A proposta é criar caminhos de mão dupla entre os territórios e o campo acadêmico, com foco em moradores cursando ensino superior ou participando de pré-vestibulares comunitários.
Relação com o poder público
Para o Instituto Decodifica, a geração cidadã de dados é um ponto de partida: produzir dados de forma ativa e consciente para monitorar, denunciar e provocar mudanças. Trata-se de uma alternativa aos dados governamentais e uma forma de afirmar a perspectiva de quem vive o território. Esse processo se articula com o conceito de “Nós por Nós”, que valoriza o pertencimento como ponto de partida.
No caso da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, a produção de dados e memória não é necessariamente voltada para melhorias de políticas públicas. Em muitos casos, serve para formalizar diagnósticos e fazer incidência direta sobre casos específicos — sem passar pelas instâncias estatais.
Em resumo, a produção de conhecimento e memória nas favelas é, antes de tudo, um ato político. É uma forma de disputar narrativas, visibilizar violências, afirmar identidades e construir futuro com as próprias mãos.
Esta pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes)._