O anúncio da compra conjunta de cerca de mil blindados CV90 por Suécia, Noruega e Lituânia sinaliza uma nova etapa na cooperação europeia em defesa. Mais do que um acordo logístico, trata-se de uma tentativa de racionalizar custos, acelerar entregas e fortalecer cadeias produtivas regionais. Para o Brasil, que possui uma base industrial de defesa relevante, o caso europeu funciona como um espelho incômodo — e também como uma oportunidade de repensar sua estratégia de aquisições militares.
Apesar de não participar desse tipo de arranjo multinacional, o Brasil tem programas de defesa ambiciosos e bem-sucedidos. A parceria com a Suécia para a produção do caça Gripen é um exemplo. Trata-se de um projeto de transferência de tecnologia que colocou empresas brasileiras — como Embraer, AEL Sistemas e Akaer — na linha de frente da produção aeronáutica de defesa.
Outro destaque é o blindado Guarani, desenvolvido em parceria com a Iveco e fabricado em Sete Lagoas (MG), que já está sendo exportado para países como Ghana, Argentina e Filipinas (o governo brasileiro rechaza vende-los à Ucrania).
Além disso, o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), conduzido em cooperação com a França, resultou na construção de unidades da classe Scorpène (este modelo serviu de base para a construção do submarino brasileiro Humaitá) e lançou as bases para o futuro submarino de propulsão nuclear brasileiro.
Programa marcado por descontinuidade e dependência
Apesar desses avanços, o modelo brasileiro de aquisição de defesa ainda é marcado por descontinuidade, dependência orçamentária e ausência de coordenação regional. Faltam planejamento de longo prazo e estratégias integradas com outros países sul-americanos que, assim como o Brasil, enfrentam restrições fiscais e desafios geopolíticos em comum. A consequência é que os ganhos de escala são limitados, os custos por unidade tendem a ser elevados e a sustentabilidade da base industrial nacional permanece vulnerável a ciclos políticos e cortes de verba.
O exemplo europeu, ainda que cercado de dificuldades históricas, mostra que é possível avançar em acordos multinacionais quando há urgência política e clareza estratégica. A aquisição conjunta dos CV90 não é um experimento isolado: ela se insere em um movimento mais amplo de interoperabilidade e integração das forças armadas europeias, motivado pelo conflito em Ucrânia e pela necessidade de reforçar a autonomia estratégica do continente. Mesmo países com tradições de neutralidade, como Suécia e Finlândia, estão revendo seus paradigmas e adotando uma postura mais assertiva.
Para o Brasil, os riscos e as ameaças são diferentes, mas não menos reais. O país mantém fronteiras extensas, atua em missões de paz, precisa proteger a Amazônia — inclusive contra pressões e interesses externos — e sofre com a fragilidade logística em regiões estratégicas. Em vez de apostar em soluções fragmentadas, poderia liderar iniciativas regionais de cooperação em defesa, tanto na aquisição de equipamentos quanto no desenvolvimento conjunto de tecnologias. A América do Sul, como bloco, carece de articulações robustas nesse setor, e o Brasil tem massa crítica suficiente para impulsionar esse tipo de agenda.
Encomendas esporádicas do governo não permitem maiores investimentos
Adotar práticas mais estáveis e previsíveis de aquisição pública permitiria reduzir gargalos históricos da indústria de defesa brasileira. Atualmente, muitas empresas do setor operam no limite da capacidade, dependendo de encomendas esporádicas do governo. A ausência de um plano plurianual de compras compromete o investimento em inovação, dificulta a manutenção de empregos qualificados e enfraquece a posição do Brasil no mercado internacional de defesa.
A criação da Estratégia Nacional de Defesa, em 2008, foi um passo importante, ao identificar áreas prioritárias e estimular a produção nacional. No entanto, a implementação tem sido irregular, com avanços pontuais e retrocessos orçamentários recorrentes. A Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID) e a Lei nº 12.598/2012, que criou o regime especial para empresas estratégicas de defesa (EED), são ferramentas úteis, mas ainda subutilizadas.
A lição europeia vai além da logística: trata-se de visão de futuro. Ao optar por compras coordenadas e por padronização de equipamentos, os países nórdicos e bálticos buscam economia, integração, interoperabilidade e influência política. Para o Brasil, a integração regional e a previsibilidade nos investimentos em defesa são elementos-chave para garantir autonomia tecnológica, sustentabilidade industrial e presença geopolítica ativa.
Em tempos de competição global acirrada, com tensões renovadas entre potências e mudanças rápidas no cenário tecnológico, o Brasil precisa decidir se continuará comprando equipamentos militares como quem faz uma reforma de emergência ou se adotará uma postura estratégica, planejada e cooperativa. O exemplo do CV90 mostra que, mesmo na Europa, cooperação militar nunca é simples — mas pode ser viável e eficaz quando há clareza de propósito. O Brasil, com sua tradição diplomática e potencial industrial, não deveria estar à margem desse debate.