A sanção da Lei nº 15.183, de 30 de julho de 2025, que proíbe o uso de animais vertebrados vivos em testes de segurança com finalidade exclusivamente cosmética, representa um marco ético, científico e civilizacional para o Brasil.
A medida reflete o amadurecimento da sociedade brasileira, que vem expressando de forma crescente a expectativa por práticas mais humanizadas na ciência e na indústria. Ao mesmo tempo, a legislação se alinha a padrões já consolidados em diversos países da União Europeia e reforça o compromisso do Brasil com o desenvolvimento sustentável e a inovação responsável.
Como alguém que colaborou ativamente, ao lado de colegas da comunidade científica, na construção da Lei Arouca (Lei nº 11.794/2008), marco legal que regulamenta o uso de animais em atividades de ensino e pesquisa científica, acompanhei de perto a evolução normativa e institucional sobre o tema. À frente do Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal (Concea), participei da regulamentação inicial da lei, da criação das Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas) em todo o país e da estruturação de comissões permanentes no próprio Concea, entre elas a de métodos alternativos, uma das mais relevantes.
Posteriormente, como diretor do CNPq e, na sequência, como secretário de Pesquisa e Formação Científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), continuei a contribuir para a consolidação de políticas públicas voltadas à substituição, redução e refinamento do uso de animais em pesquisa. Entre essas iniciativas, destaco a criação da Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama), voltada à capacitação técnica e à articulação interinstitucional, e do Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM), cuja atuação passou a ser reconhecida internacionalmente.
Transparência para o consumidor
A nova lei é clara ao vedar testes em animais para produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, bem como para seus ingredientes, desde que destinados exclusivamente a essas finalidades. A proibição abrange ensaios de segurança, toxicidade e eficácia, em qualquer fase do desenvolvimento do produto. No entanto, a legislação contempla exceções importantes: quando o ingrediente em questão também for utilizado em produtos com outras finalidades reguladas, como medicamentos, produtos veterinários ou alimentos, ou quando testes forem exigidos por regulações sanitárias estrangeiras, desde que não se refiram a usos cosméticos. Nesses casos, a empresa deve apresentar documentação comprobatória que evidencie o uso não cosmético da substância, coibindo abusos e interpretações oportunistas.
Outro ponto de destaque é o §15 do Artigo 14, que proíbe o uso de selos ou alegações como “não testado em animais” sempre que a comprovação de segurança do produto depender de testes realizados com animais vivos após a entrada em vigor da lei. A medida visa evitar alegações enganosas, assegurando transparência ao consumidor e coerência entre os discursos de sustentabilidade e as práticas regulatórias. Trata-se de um instrumento essencial para reforçar a integridade da cadeia produtiva e a confiança pública.
Incentivo aos métodos alternativos
A lei determina ainda que os órgãos competentes instituam, no prazo de até dois anos, um plano nacional de fomento, incentivo e fiscalização do uso de métodos alternativos. Essa iniciativa pode ser um divisor de águas para a consolidação de uma infraestrutura científica voltada à inovação regulatória, permitindo que o país avance não apenas na proibição, mas também na criação de caminhos seguros, tecnicamente validados e acessíveis para a substituição do uso de animais.
Para que os avanços legais se traduzam em benefícios concretos para a sociedade, a ciência e o setor produtivo, será essencial uma articulação efetiva com a Anvisa. Como preconizado pela própria legislação, a agência reguladora deve atuar com alinhamento técnico, respeitando os novos dispositivos legais e os marcos estabelecidos pelo Concea, mas sem comprometer as avaliações de segurança sanitária. Isso inclui a análise caso a caso de ingredientes naturais, frequentemente utilizados em formulações cosméticas, que podem exigir estudos complementares quando associados a efeitos terapêuticos ou potenciais riscos toxicológicos.
Biodiversidade brasileira
O Brasil, que detém a maior biodiversidade do planeta e desempenha papel de destaque nos setores cosmético, farmacêutico e de biotecnologia, precisa de uma regulação ao mesmo tempo clara e tecnicamente robusta. As importações de insumos para pesquisa continuam sendo um gargalo, com entraves burocráticos que dificultam a ciência como um todo e também afetam a adoção de métodos alternativos. Além disso, nem todos os métodos substitutivos disponíveis contam com validação internacional robusta ou com a infraestrutura técnica necessária para sua aplicação ampla, o que inspira preocupação.
Diante desse cenário, é urgente fortalecer o diálogo técnico e contínuo entre Anvisa, Concea, MCTI, setor produtivo e comunidade científica. Esse esforço será determinante para assegurar uma transição segura, ética e juridicamente sólida, evitando tanto a paralisia regulatória quanto a adoção de critérios que comprometam a segurança dos produtos oferecidos ao mercado.
Experimentação animal para saúde
É importante frisar que a experimentação animal continua sendo imprescindível em diversas áreas, como no desenvolvimento de vacinas, fármacos inovadores, produtos biológicos e na investigação aprofundada dos mecanismos biológicos envolvidos em doenças e terapias. Modelos animais geneticamente modificados, como os knockouts ou transgênicos, continuam tendo papel essencial em pesquisas sobre câncer, doenças raras, enfermidades neurodegenerativas e terapias avançadas. A nova lei se restringe ao escopo cosmético e não deve ser extrapolada ao restante da pesquisa biomédica.
A Lei nº 15.183/2025, portanto, marca um passo importante rumo a uma ciência mais ética, sem abrir mão do rigor técnico nem da segurança regulatória. Trata-se de uma legislação que não demoniza a ciência, mas exige o que ela tem de melhor: criatividade, inovação, responsabilidade e transparência.
Nosso desafio, e também nossa oportunidade, é acelerar a chegada de um futuro em que o uso de animais em testes seja residual, ético, substituível e, cada vez mais, desnecessário.
Esse futuro ainda está em construção. Mas cabe a nós cientistas, com ética, investimento e visão de longo prazo, torná-lo possível.