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Psicanálise, saúde mental e políticas de cuidado: guia aborda o bem-viver nas universidades

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Psicanálise, saúde mental e políticas de cuidado: guia aborda o bem-viver nas universidades

Frente a crescentes índices de sofrimento psíquico nas universidades, tanto de discentes como de docentes, um grupo de professores pesquisadores de universidades públicas brasileiras reuniu-se a partir de 2023 em torno do Projeto de Pesquisa multicêntrico intitulado “Psicanálise e Saúde Mental na Universidade: políticas de vida, escuta e sobrevivência psíquica em tempos sombrios”.

Ao longo de quase três anos de trabalho, realizando eventos, escrevendo artigos e produzindo discussões nas universidades, o Projeto cresceu e conta, atualmente, com a participação de onze universidades no Brasil, uma na França e duas na Argentina.

Com o propósito de refletir sobre o mal-estar na universidade, a pesquisa visa ampliar a discussão sobre o tema da saúde mental nas instituições de ensino superior desde a perspectiva da psicanálise em diálogo com as questões sociais e políticas que incidem na produção de sofrimento psíquico, ou seja, sublinha a dimensão sociopolítica do sofrimento psíquico como importante fator de agravamento do adoecimento de alunos e professores.

Ao evocar a noção freudiana de mal-estar, o estudo leva para o centro do debate o inevitável confronto do sujeito humano com a vida social. Por isso, ao longo de sua história, a psicanálise tornou-se um patrimônio da cultura que vai além de uma terapêutica para a clínica individual, mas também nos ajuda a pensar, de modo crítico e subversivo, as problematizações do laço social e seus efeitos para as subjetividades em cada tempo social.

Depressão, ansiedade e tentativas de suicídio

Em um primeiro momento, a pesquisa se detém no agravamento do sofrimento psíquico de estudantes, especialmente, diante das taxas crescentes de quadros de depressão, ansiedade e tentativas de suicídio deste público. Importa destacar que a V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural do (as) Graduandos (as) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), realizada em 2018 aponta que 83,05% dos entrevistados relataram dificuldades emocionais em seus percursos acadêmicos, dentre as quais a ansiedade e o desânimo aparecem com maior frequência, estando também presentes a ideia de morte (10,8%) e de pensamento suicida (8,5%).


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O adoecimento dos jovens aparece também no aumento dos abandonos de disciplinas, matrículas e cursos. Assim, a pesquisa discute, especialmente os desafios quanto à inserção, permanência e ao pertencimento experimentados por esse público, levando em conta as mudanças promovidas pelas ações afirmativas no ensino superior.

Com isso, oferece uma alternativa crítica à privatização do sofrimento psíquico através da cultura de diagnósticos e da medicalização, que se agrava diante do contexto neoliberal, das precarizações dos investimentos públicos na educação e na ciência e dos laços de colonialidade que ainda se fazem presentes nas relações sociais e acadêmicas em nosso país.

Na contramão dessa tendência, que muitas vezes individualiza os impasses sociais, a equipe da pesquisa tem desenvolvido dispositivos de escuta e cuidado coletivo, numa perspectiva de pesquisa-intervenção, orientada pela ética da psicanálise, ancorada na palavra e na escuta do mal-estar. Isto se dá através da realização de oficinas, rodas de conversa, rodas de sonhos, eventos e disciplinas que reúnem estudantes da graduação e pós-graduação das universidades participantes do projeto.

Em paralelo, a equipe tem estabelecido parcerias com as pró-reitorias universitárias relativas a assuntos estudantis, buscando o fortalecimento de uma rede de cuidados e renovação de políticas para a saúde mental nas universidades em que atua.

Cartilha orienta sobre saúde mental e cuidado

Capa do Guia para o bem-viver universitário: cartilha destina-se a todos os membros da comunidade acadêmica universitária. Clique aqui para ler a cartilha

Além das ações já realizadas e visando uma renovação nas propostas de intervenção no âmbito de políticas de saúde mental na universidade, em setembro de 2025, a equipe começou a realizar lançamentos regionais da cartilha Um Guia para o Bem-Viver na Universidade: psicanálise, saúde mental e políticas de cuidado.

O material foi elaborado considerando a importância que este debate, e sua visibilidade, tem para a própria movimentação da problemática. A produção está em formato de e-book e acessível de modo virtual e gratuito.

A cartilha destina-se a todos os membros da comunidade acadêmica universitária. É composta pelos seguintes itens:

● Análise crítica sobre como a universidade produz sofrimento e como pode produzir uma política de cuidados;

● Propostas de ações para estudantes, docentes e gestores;

● Experiências de escuta e acolhimento inspiradas na psicanálise.

Partindo do pressuposto de que o sofrimento dos universitários não responde a questões apenas individuais, o material evoca a noção já referida da dimensão sociopolítica do sofrimento na Universidade, cujo efeito, entre outros, tem sido o declínio das expectativas relativas à formação acadêmica como espaço de construção de futuro para jovens brasileiros.

Sofrimento psíquico: espelho retorcido

O sofrimento psíquico que atualmente assola estudantes, docentes e técnicos não é relativo apenas ao fracasso individual, até porque a universidade não é uma ilha de racionalidade pura, imune às dores do mundo. Ela reflete e produz as alegrias e sofrimentos. Reflete, como uma espécie de espelho, muitas vezes distorcido, as tensões, violências e precariedades que estruturam a sociedade.

A cartilha nasce justamente da urgência em nomear essa dor coletiva como consequência de uma lógica adoecedora: a universidade como plataforma de ativos intangíveis, voltada à geração de valor mercantil e à competitividade. Ora, quando a universidade abandona sua dimensão comunitária, quando deixa de ser um território de acolhimento e afetos para se tornar uma linha de montagem de créditos e métricas, ela se torna hostil à vida e, especialmente, à qualidade de vida.

Transformar a universidade em um espaço de cuidado não é uma proposta isolada, é parte do compromisso com o direito a uma existência digna para a juventude brasileira. O Estatuto da Juventude reconhece a saúde, incluindo a saúde mental, como um direito e reforça a importância da prevenção da violência, respeitando as especificidades dessa fase da vida.

Esse direito, no entanto, fica comprometido quando prevalecem lógicas acadêmicas baseadas em exigências excessivas, competitividade e negligência com o bem-viver.

Muitas diretrizes internacionais das quais o Brasil é signatário evidenciam que o cuidado da saúde mental nas instituições educacionais não é apenas uma aspiração desejável, mas um compromisso que envolve dimensões legais, éticas e políticas, exigindo ações concretas também por parte das instituições de ensino superior.

Iniciativas como o Programa Nacional de Juventude, o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio e outras políticas públicas apontam para o papel da universidade como promotora de saúde e proteção.
Essa perspectiva é reforçada por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Estratégia Global para a Saúde de Adolescentes e Jovens 2024-2030, e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, documentos que reafirmam o papel das universidades como espaços de garantia de direitos e cuidado e, também, de promoção de saúde mental.

A Cartilha sobre o bem-viver na universidade, como um dispositivo de letramento para a comunidade acadêmica, não alcança respostas prontas, mas convida à reflexão, à análise crítica e à ação coletiva. Entender que o sofrimento também é sociopolítico nos ajuda a questionar o adoecimento e o cansaço naturalizados no cotidiano universitário.

Esperamos que a cartilha possa não apenas a nomear dores, mas também fortalecer redes de apoio, mobilizações e a construção de uma cultura acadêmica que tenha o cuidar como prática cotidiana.

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