A democracia atualmente é formada tanto on-line como off-line. As manifestações começam em bate-papos criptografados; os debates acontecem nos comentários e o discurso é filtrado por algorítmos. A promessa da internet era clara: um espaço onde qualquer pessoa pudesse falar, se organizar e ser ouvida. Mas essa promessa está desparecendo. Em todos os continentes, as vozes que mais precisam do espaço digital, movimentos jovens, redes feministas, grupos indígenas, jornalistas e organizadores de base, estão sendo silenciados não pela força, mas por interrupções, vigilância, censura e algorítmos tendenciosos. O que antes era uma ferramenta de libertação, agora, cada vez mais, é um local de repressão.
Este não é apenas um dilema digital, é uma crise democrática. Da Divisão Norte-Sul, a erosão do espaço digital civil está reduzindo a participação, calando a dissidência e isolando comunidades. A sociedade civil está sendo pressionada entre um controle estatal mais rigoroso e a indiferença das plataformas.
O Relatório Síntese de 2025 sobre o Ecossistema de Democracia Digital, da CIVICUS sob a Iniciativa para a Democracia Digital (IDD), traça esses padrões através de seis regiões — do Leste Asiático à África Subsaariana. O que está em risco não é somente o acesso à internet, mas o acesso ao poder, direitos e visibilidade. Quando a democracia digital desaparece, o mesmo acontece com a capacidade das pessoas em moldar o seu futuro.
A lenta erosão do espaço civil na era digital
Em seis regiões globais, a democracia digital é atualmente tanto uma tábua de salvação quanto um campo de batalha disputado. O Relatório Síntese revela como a sua dissolução está sistematicamente esvaziando a sociedade civil de seu poder, especialmente no Sul Global, ameaçando não apenas a participação, mas a própria sobrevivência.
No Leste Asiático, Taiwan brilha como um modelo raro de inovação civil-tecnológica, com ferramentas como o Taiwan e Join incorporando as vozes dos cidadãos na tomada de decisões públicas. Contudo essa abertura está cada vez mais isolada. Na China, a censura não é apenas sobre filtrar a dissidência; é um plano para impedir totalmente a resistência. O “Grande Firewall” reconfigura a imaginação civil intencionalmente. Em Myanmar, o regime militar utiliza apagões digitais para silenciar protestos, fragmentar movimentos e implantar o medo. Mesmo em democracias relativamente mais liberais como Coreia do Sul e Japão, tensões geopolíticas e monopólios de plataformas suscitam preocupações sobre o controle de dados e liberdade de expressão.
O Sul da Ásia reflete essas tensões. Na Índia, a maior democracia do mundo, os bloqueios da internet — particularmente em Cashemira — atualmente são ferramentas rotineiras de governança, frequentemente aplicadas evasivamente em nome da segurança. Em Bangladesh e Sri Lanka, agentes da sociedade civil enfrentam perseguição algorítmica e legal, especialmente direcionada às mulheres e minorias. Contudo a resistência persiste. No Nepal, meios de comunicação populares, como rádios comunitárias, trazem vozes excluídas para o discurso público, enquanto no Sri Lanka, os esforços para alfabetização digital continuam a construir resiliência, apesar do subinvestimento crônico.
Na América Latina e no Caribe, o ativismo digital é intenso, mas enfrenta uma reação implacável. Movimentos como o feminista #NiUnaMenos na Argentina têm transformado o cenário político a favor dos direitos das mulheres e os manifestantes do #SOSColombia contra a violência policial transformaram o WhatsApp, TikTok e Twitter em ferramentas de justiça e visibilidade, amplificando vozes ignoradas pela mídia tradicional, mas foram recebidos com censura. No Brasil, deepfakes e campanhas de difamação on-line alimentam a desconfiança pública nas eleições. Na Nicarágua e Venezuela, a repressão digital inclui doxxing, suspenção de contas e ameaças de prisão. As comunidades rurais e indígenas permanecem marginalizadas digitalmente, prejudicadas por barreiras linguísticas, infraestrutura precária e negligência das plataformas.
Em nenhum outro lugar os riscos são maiores que na África Subsaariana, onde a internet é muitas vezes o meio principal de contato entre as comunidades. Movimentos liderados por jovens, como o #EndSARS na Nigéria, #MyDressMyChoice no Quênia e o #ZimProtests2024 no Zimbábue revelam como as plataformas digitais podem transformar conflitos locais em demandas globais. Mesmo assim essas plataformas são constantemente atacadas. Da Etiópia à Zâmbia os governos usam bloqueios para silenciar a dissidência e apagar a história em tempo real. Na República Democrática do Congo, no Chade e na República Centro-Africana, a infraestrutura precária exclui muitos, antes mesmo que eles possam se conectar. Ferramentas de tecnologia comunitárias promissoras, como Ushahidi ou portais de dados abertos em Gana e Nigéria oferecem esperança, mas são limitados pelo fornecimento instável de energia, censura do governo e falta de suporte das plataformas.
Na Ásia Ocidental e Norte da África, as ferramentas digitais que anteriormente provocavam rebeliões, agora são usadas como armas contra os próprios movimentos que elas fortaleceram. No Egito, Tunísia e Libano, a sociedade civil enfrenta dupla ameaça — a vigilância do governo e o abandono das plataformas. Os ativistas enfrentam assédio, mas são punidos por algorítmos por denunciá-los. Na Palestina, o apagão digital é uma realidade sistêmica. Publicações são sinalizadas, contas são restringidas e a visibilidade é controlada não acidentalmente, mas por meio das políticas das plataformas que refletem a injustiça política. Na Síria e no Iêmen, a guerra colapsou tanto a infraestrutura física quanto a digital, intensificando ainda mais a exclusão civil.
A Europa Oriental e a Ásia Central navegam em um espaço limiar entre a repressão autoritária e a aspiração democrática. Na Ucrânia, desde a invasão russa de 2022, as plataformas digitais tornaram-se salva vidas usadas para documentar crimes de guerra, coordenar ajuda e preservar a memória coletiva. Mas do outro lado da fronteira, a Rússia exemplifica o autoritarismo digital. Notícias independentes são proibidas, a sociedade civil é difamada como se fossem agentes estrangeiros e dissidentes são levados ao silêncio. No Casaquistão, Quirguistão e Uzbequistão, os agentes civis enfrentam vigilância pesada, narrativas controladas pelo estado e manipulação algorítmica, enquanto se opõem em espaços digitais limitados.
Por todas essas geografias diversas, os padrões convergem. A repressão digital está crescendo mais rapidamente que a resiliência digital. A arquitetura global do espaço digital cada vez mais favorece os poderosos; governos, plataformas e agentes privados, deixando os movimentos sociais expostos, fragmentados e com poucos recursos. Os sistemas de apoio são frequentemente inacessíveis ou desalinhados e quem fala mais alto continua determinando as regras.
Entretanto, a sociedade civil persiste. Não porque o espaço digital é seguro, mas porque abandoná-lo significaria abandonar as comunidades que dependem dele. Em todo o mundo, ativistas continuam aparecendo, não apenas para serem vistos, mas para insistir no seu direito de existir, resistir e reinterpretar a própria democracia.
A democracia digital não pode sobreviver sem a sociedade civil
A erosão da democracia digital não se trata apenas de censura; é também sobre poder e falta de apoio sustentável. O Relatório Síntese revela como as organizações de base e marginalizados da sociedade civil são sistematicamente excluídos dos espaços digitais pelos sistemas financiadores e pela dinâmica das plataformas. O financiamento é direcionado para ONGs urbanas e bem conectadas, enquanto comunidades lideradas por jovens, grupos indígenas e organizadores rurais são marginalizados por programas complexos e financiadores avessos ao risco. Aqueles mais enraizados na luta pela vida são frequentemente os menos apoiados. Enquanto isso, as grandes plataformas como Meta, Google e X (antigo Twitter) engajam a sociedade civil apenas simbolicamente, mantendo relações extrativistas que ecoam padrões coloniais de controle.
Como afirma Chibuzor Nwabueze, Coordenador do Programa e da Rede da CIVICUS, Iniciativa para a Democracia Digital (IDD):
Civil society has repeatedly proven to be the backbone of democracy especially to the extent to which it is able to mobilise mass citizen action. Within the context of its renowned capacity lies also its interconnected dependence. Civil Society’s ability to amplify democracy through digital means will rely heavily on its ability to substantially control and lead the technology that defines the digitalisation of its efforts. Anything outside of this will result in imposed limitations by external actors seeking both control of democracies and citizen action.
A sociedade civil tem repetidamente provado ser a espinha dorsal da democracia, especialmente na medida em que é capaz de mobilizar ações civis em massa. Dentro do contexto de sua reconhecida capacidade, reside também sua independência interligada. A capacidade da sociedade civil para ampliar a democracia através de meios digitais dependerá fortemente de sua capacidade de controlar e liderar substancialmente a tecnologia que define a digitalização de seus esforços. Qualquer coisa fora disso resultará em limitações impostas por agentes externos que procuram controlar tanto as democracias quanto a ação popular.
Ainda assim, a sociedade civil resiste, não porque o sistema seja justo, mas porque as comunidades não têm escolha. Nas diversas regiões, as pessoas constroem cordas salva vidas digitais através de chats criptografados, treinamentos de segurança DIY e projetos de tecnologia de base. Essas não são as inovações prediletas dos financiadores, mas elas são a espinha dorsal da democracia digital.
O Relatório Síntese não apenas mapeia o que está errado; ele mostra qual caminho seguir. Ele estimula os financiadores a mudarem da obssessão por novidades a investirem em pessoas de forma sustentável e igualitária: tradutores, responsáveis pela segurança digital, tecnólogos comunitários, defensores estratégicos e adjuvantes de mudança. Porque a verdadeira democracia digital não está acontecendo nos laboratórios do Vale do Silício, ela está se revelando nas rádios coletivas do Nepal, nas maratonas de programação regionais e nas narrativas criptografadas do Sudão ao Sri Lanka. Esses esforços podem ser invisíveis, mas são vitais. O relatório também exige que as plataformas sejam realmente responsabilizadas — além das relações públicas, em direção ao compartilhamento do poder e governança comunitária.
Dizer que a democracia digital está desaparecendo não é derrotismo; é uma chamada para ação. Quando a sociedade civil é desconectada, o que se perde não são apenas vozes, mas história, memória, resistência e possibilidade.
A internet não irá nos salvar. Nem as plataformas. Mas a sociedade civil poderá, se escolhermos apoiá-la, financiá-la e confiar nela. Porque quando as pessoas desaparecem, a democracia não somente enfraquece, ela desaparece.