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Quando a soberania de um país vira barganha: as pressões hemisféricas na era Trump 2.0

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Quando a soberania de um país vira barganha: as pressões hemisféricas na era Trump 2.0

A soberania, desde a Paz de Westfália (conjunto de tratados de 1648 que encerrou duas grandes guerras europeias), consagra o direito de cada Estado exercer autoridade sobre seu território e sua população. No plano jurídico, ela fundamenta a igualdade formal entre os Estados; no plano político, sua aplicação é condicionada por relações assimétricas de poder. Essas tensões tornam-se mais evidentes na atual ordem internacional, onde a soberania não é apenas uma prerrogativa legal, mas também um campo de disputa constante.

Na prática, a soberania tem sido moldada por pressões externas — econômicas, normativas e institucionais. Preservar fronteiras já não é suficiente. A autodeterminação exige capacidade de reação frente a dispositivos extraterritoriais, sanções e normas aplicadas por potências dominantes. Nesse contexto, os Estados Unidos sob Donald Trump têm operado uma reconfiguração das formas de influência hemisférica, alterando o grau de autonomia dos países latino-americanos.

Instrumentos como tarifas, sanções e exigências regulatórias passaram a ser utilizados de forma recorrente para ajustar o comportamento de parceiros. Países como México, Brasil, Colômbia, Panamá e Canadá tiveram sua soberania tratada como variável negociável, subordinada ao nível de aderência às expectativas de Washington.

Condicionamento e vínculos de dependência

A atual presidência de Trump intensificou uma lógica de condicionamento explícito: quanto maior a convergência política com os Estados Unidos, mais promissoras as concessões econômicas; quanto maior a dissidência, maiores as penalidades. O caso da Argentina ilustra a expectativa de recompensas com base na afinidade ideológica. Mesmo assim, nada é garantido diante do caráter volátil da política externa americana que se confunde com Trump.

O México foi pressionado por meio de tarifas para adotar políticas mais duras de controle migratório. A Colômbia recebeu advertências em função de sua política antidrogas. O Canadá, mesmo sendo aliado histórico, teve sua soberania contestada por suposta omissão no combate ao tráfico de fentanil e por menções provocativas à sua eventual “integração” como 51º estado norte-americano.

Esse padrão não se restringe ao continente americano. A Dinamarca, por exemplo, foi alvo de pressões em razão da Groenlândia, evidenciando que a lógica de barganha é aplicada inclusive contra aliados europeus.

No Brasil, observou-se uma aplicação diferenciada dessa lógica conforme o governo em exercício. Durante a gestão Bolsonaro, houve alinhamento com Washington por afinidade ideológica, mas sem resultados práticos positivos para o comércio ou para a diplomacia brasileira na esfera internacional.

Na atual administração, ideologicamente distante da plataforma de Trump, os mecanismos de pressão permanecem, ainda que sob outras formas. Exemplo emblemático é a recente inclusão do ministro Alexandre de Moraes na lista de sanções da Lei Magnitsky, com base em acusações que extrapolam o escopo original da legislação. A extraterritorialidade jurídica, neste caso, não recorre à força militar, mas sim à imposição de normas e sanções para influenciar decisões domésticas. Trata-se de um uso instrumental da legalidade internacional para condicionar a atuação de atores públicos.

Essa forma de atuação remete à lógica da Doutrina Monroe, não mais expressa por meio de intervenção militar direta, mas por mecanismos normativos e econômicos. Países que não aderem às diretrizes dos Estados Unidos são rotulados como disfuncionais; os que se alinham, recebem promessas de cooperação — nem sempre cumpridas, e quase sempre condicionadas e imensas desvantagens para os países que celebram os pré-acordos.

Disputa por autonomia e exercícios de Resistência

A crescente instrumentalização de normas internacionais por potências hegemônicas — como ilustrado pela atuação dos Estados Unidos ao pressionarem diretamente instituições brasileiras, notadamente o Supremo Tribunal Federal por meio da figura do Ministro Alexandre de Moraes — impõe aos Estados o desafio de repensar suas estratégias de inserção internacional. No caso do Brasil, isso demanda o fortalecimento da capacidade de resposta institucional, a diversificação de parcerias além dos eixos tradicionais — como EUA e China — e a afirmação de pautas próprias em diferentes arenas multilaterais.

Enfrentar o atual contexto de coerção política e econômica requer mais do que manifestações de repúdio. Exige a formulação de uma política externa coerente e autônoma, sustentada por instituições sólidas e por redes diplomáticas que incluam países como Índia, países africanos, Coreia do Sul, Japão e as nações do Sudeste Asiático, por exemplo — e um diálogo estratégico com a União Europeia e com o Reino Unido, mesmo diante de suas ambiguidades.

A construção de autonomia produtiva e tecnológica é igualmente indispensável, ampliando a margem de ação interna frente à crescente pressão normativa e regulatória externa.

Vale sublinhar que estar sujeito a pressões externas não configura, por si só, uma violação da soberania. O problema reside na desigualdade estrutural das relações internacionais, que compromete a capacidade de contestação e elimina qualquer expectativa real de reciprocidade. É nesse contexto que emerge o conceito de soberania funcional: a habilidade concreta de formular e executar políticas públicas com base em interesses nacionais, mesmo sob condições adversas e diante de tentativas de imposição unilateral de normas externas.

Nesse cenário, os países latino-americanos enfrentam um impasse. Devem optar entre submeter-se às exigências externas, comprometendo sua autonomia, ou resistir — assumindo os custos políticos e econômicos que tal postura acarreta. Essas estratégias, no entanto, não são mutuamente excludentes. É possível — e necessário — combiná-las de forma pragmática: negociar em frentes onde existam margens para ganhos mútuos, como nas esferas comerciais e financeiras, sem renunciar aos fundamentos institucionais que garantem a integridade do Estado.

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