Este artigo, escrito por Natalia Viana, foi originalmente publicado pela Agência Pública em 24 de fevereiro de 2025. Foi editado por motivos de tamanho e contexto, e republicado aqui sob um acordo de parceria com a Global Voices.
Em 22 de fevereiro, a plataforma de vídeos Rumble foi suspensa no Brasil após uma ordem de Alexandre de Moraes, do ministro do Supremo Tribunal Federal. A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) notificou mais de 20 mil provedores e operadoras de internet sobre a suspensão. Moraes exigiu que a Rumble suspendesse as contas ligadas ao influenciador brasileiro de extrema-direita Allan dos Santos, atualmente foragido da justiça brasileira e refugiado nos Estados Unidos, e que nomeasse um representante legal no Brasil. A Rumble não cumpriu a ordem.
No entanto, Moraes também estava respondendo à provocação da Rumble e do presidente dos EUA, Donald Trump.
Poucas horas depois que o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro foi indiciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 18 de fevereiro, Trump expressou sua insatisfação por meio de uma ação judicial. Sua empresa, a Trump Media & Technology Group (TMTG), proprietária da plataforma de mídia social Truth Social, entrou com uma ação contra Moraes em um tribunal da Flórida juntamente com a Rumble, argumentando que a decisão do Supremo Tribunal Federal violava o direito à liberdade de expressão nos EUA — a conhecida Primeira Emenda. Ambas as empresas pedem que a Justiça americana emita um parecer estabelecendo que Moraes não pode ditar suas ações, uma vez que estão sediadas nos EUA, apesar de prestarem serviços no Brasil. O momento diz tudo.
Após a suspensão da Rumble, as empresas solicitaram uma liminar para punir imediata e temporariamente Moraes. Se você já sabe tudo isso, vamos nos aprofundar nas nuances por trás desta batalha.
Uma resposta frustrante
Minha primeira observação é que a ação judicial de Trump não cumpriu as expectativas dos apoiadores de Bolsonaro, dadas as repetidas viagens de seu filho Eduardo Bolsonaro aos EUA para solicitar sanções econômicas na esperança de impedir a prisão de seu pai.
A propósito, poucos dias após a acusação, Eduardo esteve novamente na Flórida, participando da conferência da CPAC, onde denunciou a chamada “censura” e “ditadura”, termos fabricados pela extrema-direita, e pediu anistia para os manifestantes da ‘“versão brasileira de 6 de janeiro”. Trump, em seu discurso, acenou para a família Bolsonaro — “uma família muito boa” — chamando Eduardo de “meu amigo” e dizendo: “Envie meus cumprimentos ao seu pai”.
Mas não houve tarifas exorbitantes ou ameaças de sanções por parte do governo dos EUA.
Uma ação judicial sem base legal, mas uma ferramenta política poderosa
O que vimos foi uma ação judicial vazia, sem consistência jurídica, mas que deve ser entendida como a criação de um evento político; produção de conteúdo para redes extremistas e uma mensagem clara do presidente dos EUA (como o “mande um oi” de Trump para Bolsonaro).
No típico estilo MAGA, o processo inclui insinuações conspiratórias que vão além dos ataques a Moraes. Por exemplo, observa-se que ele “ascendeu ao STF após um acidente de avião que matou seu antecessor, o ministro Teori Zavascki“, que, por sua vez, “liderava a Operação Lava Jato, uma investigação anticorrupção multibilionária no Brasil” — uma insinuação que serve como mensagem subliminar para os teóricos da conspiração. Também afirma que Moraes assumiu o cargo “apesar de não ter experiência anterior como juiz”.
Mais tarde, a empresa de Trump levou as acusações ainda mais longe, alegando que Moraes contornou os mecanismos de cooperação internacional para impor a suspensão da plataforma e, em troca, “fabricou jurisdição por meio de coerção”. O principal argumento é que a Rumble não deve explicações aos tribunais brasileiros porque está sediada na Flórida e não deveria ser obrigada a ter um representante legal no país, uma alegação que desrespeita a legislação brasileira na qual Moraes baseia suas decisões.
Notavelmente, os advogados de Trump se referem a Allan dos Santos como “Dissidente Político A”.
Além disso, tentam apresentar um argumento técnico que não convence ninguém que tenha um conhecimento básico sobre como a internet funciona. O processo alega que “como a infraestrutura da Rumble é integrada globalmente, a suspensão de seu serviço no Brasil prejudicaria a capacidade de atender plenamente aos usuários dos EUA, interrompendo a liberdade de expressão”. Na realidade, a suspensão é somente um bloqueio de URL pelos provedores brasileiros; não tem nada a ver com o “sistema integrado”da Rumble.
Da mesma forma, esse é o raciocínio usado para justificar o envolvimento da empresa de Trump no processo. A petição argumenta que “a Truth Social depende da infraestrutura na nuvem e de transmissão de vídeo da Rumble para fornecer conteúdo multimídia aos seus usuários. Se a Rumble for suspensa, isto afetará as operações da Truth Social”. Novamente, um absurdo. Se a Truth Social quiser operar no Brasil, deverá adotar uma plataforma de vídeo que esteja em conformidade com a legislação brasileira.
Um manual jurídico para sancionar Moraes
A parte mais impressionante da ação judicial é a comparação das decisões de Moraes com a decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI), que pede a prisão do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu por crimes contra a humanidade.
Por meio da ordem executiva 14203, Trump ordenou o congelamento de ativos financeiros e a proibição de viagens de funcionários do TPI e de suas famílias.
Qualificando as decisões da Supremo Tribunal Federal como uma “extensão unilateral e ilegal da autoridade judicial brasileira nos Estados Unidos” e uma forma de “censura extraterritorial”, os advogados de Trump traçaram um roteiro sobre como penalizar pessoalmente Moraes usando o precedente do TPI.
“As táticas extrajudiciais do ministro Moraes também entram em conflito direto com a política pública dos EUA, segundo indica a ordem executiva 14203, emitida pelo presidente Trump no início deste mês. A ordem executiva se opõe a que tribunais estrangeiros imponham jurisdição sobre entidades dos EUA sem consentimento. Ao coagir a Rumble a nomear advogados brasileiros e ameaçar com ações punitivas em caso de descumprimento, as ações do ministro Moraes refletem o tipo de conduta extraterritorial condenada pela ordem executiva”, afirma o processo.
Segundo os advogados de Trump, “o paralelismo entre as ações do TPI, condenadas na ordem executiva 14203, e a conduta do ministro Moraes são impressionantes”. O texto continua: “A ordem executiva enfatiza que a intromissão judicial estrangeira não é meramente uma questão processual, mas uma ameaça substantiva aos Estados Unidos”. Argumentam que “se as ações do ministro Moraes não forem controladas haverá um precedente perigoso, no qual os tribunais estrangeiros poderão impor rotineiramente suas leis às empresas dos EUA”.
A empresa de comunicação de Trump é apenas uma fachada política?
Há outro aspecto dessa luta que é muito importante. O quarto ponto é relativo à empresa Trump Media & Technology Group (TMTG), cujo principal negócio é a plataforma de mídia social Truth Social.
Após ler o relatório anual de 2024 e pesquisar na internet, minha impressão é que essa empresa foi criada para atender ao projeto político de Trump, pois não é um empreendimento comercial viável.
Considere o seguinte: Criada em 2021, tem pouco mais de 6 milhões de usuários ativos. Isso é muito pouco em comparação com o Facebook (3 bilhões), YouTube (2,5 bilhões), WhatsApp e Instagram (2 bilhões cada). Até a Rumble tem mais de 50 milhões. A própria conta de Trump (a mais importante da plataforma) não chega a 10 milhões de seguidores, e suas postagens recebem entre 2 mil a 4 mil curtidas. Em comparação, ele tem mais de 100 milhões de seguidores no X (Twitter), enquanto Elon Musk supera 200 milhões. Não é surpresa que Trump tenha voltado a usar o Twitter, apesar de ter prometido que não o faria.
A Truth Social é, portanto, um fracasso retumbante como rede social porque tem poucos usuários.
A plataforma reforça seu pacto com a Rumble no processo contra Moraes como forma de colocar as impressões digitais de Trump em um factoide do sistema jurídico dos EUA para tentar intimidar a justiça brasileira. É provável que, em sua cruzada pela liberdade de expressão (ou liberdade de opressão), Trump use a Truth Social como braço judicial ou balão de ensaio para operações que poderiam ser adotadas posteriormente por seu governo, ou são simplesmente mais um espetáculo fabricado usando o sistema jurídico dos EUA para criar manchetes que em breve desaparecerão.