Em sua única entrevista à imprensa antes da COP 30, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que “falhamos em evitar um aumento acima de 1,5 grau” e alertou para fortes impactos “se não fizermos uma redução drástica das emissões o mais rápido possível”.
A narrativa é focada em torno dos chamados “pontos de inflexão” ou “pontos de não retorno”, compreendidos como transformações críticas em ecossistemas devido ao aumento da temperatura, que ocorrem de formas abruptas e resultam em mudanças irreversíveis.
Um dos exemplos mais citados é o ponto de inflexão da floresta amazônica – como aborda o cientista Carlos Nobre, caso o aquecimento global chegue a 2ºC ou 2,5ºC, a Amazônia viraria uma “savana degradada”.
Para Guterres e Nobre, grande parte das soluções estão localizadas no debate da descarbonização, com o corte imediato das emissões de gases de efeito estufa. Guterres afirma que precisamos de cerca de 60% de redução de emissões para ficar dentro de 1,5ºC, enquanto Nobre enfatiza que precisamos remover de 3 a 4 bilhões de toneladas de CO2 até 2025.
Reforçando esses posicionamentos, o “Climate Clock”, por exemplo, monitora os anos, dias, horas e segundos que, em tese, seria possível para conter os mais de 20 pontos de inflexão mundiais. Os aspectos e medidas em torno das emissões de gases do efeito estufa também ganham proeminência na “NDC do Brasil” – Contribuição Nacionalmente Determinada. Nas 64 páginas que compõem a “visão do país para 2035”, são cerca de 50 menções ao “carbono”.
Nos cenários de colapso global e de “fim do mundo”, o carbono vem assumindo o papel de protagonista. O risco de manter exclusivamente esse protagonismo dos gases de efeito estufa está em adiar o fim do mundo. O mundo vai acabar somente quando alcançarmos os pontos de inflexão? E se o mundo já estiver acabado? Quantas vezes o mundo pode acabar? O mundo acaba para um corpo assassinado? O mundo acaba para um território violado? Bem, só na semana que antecede a COP 30, o mundo já acabou duas vezes, numa floresta não muito distante de Belém.
Quebradeiras de coco foram assassinadas no Pará
No dia 03 de novembro de 2025, Antônia Ferreira dos Santos e Marly Viana Barroso foram assassinadas no município de Novo Repartimento, sudeste do Pará. Segundo nota divulgada pelo MIQCB, “as duas quebradeiras de coco saíram para trabalhar na manhã da segunda-feira, para coletar coco babaçu — como fazem milhares de mulheres extrativistas na Amazônia e no Cerrado, garantindo o sustento de suas famílias. Foram encontradas sem vida na noite do dia 03, com sinais de violência brutal”.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos últimos 10 anos (2015-2024) foram registrados 393 ataques que resultaram em assassinato no campo, envolvendo principalmente os sem-terra, indígenas, posseiros, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.
As “manchas de conflito” são predominantes nos territórios do norte e noroeste maranhense, norte do Tocantins e sudeste do Pará; norte de Rondônia e sul do Amazonas; sul de Mato Grosso do Sul e noroeste do Paraná; e Recôncavo Baiano e Sul da Bahia.
Neste cenário de intensas violências e violações de direitos humanos, o uso intensivo de agrotóxicos como arma química para atacar comunidades deve ser considerada uma nova estratégia de expulsão pelo agronegócio. Em 2024, o Maranhão registrou 228 conflitos envolvendo agrotóxicos, o que representa 82% dos casos nacionais, com 68% concentrados no Leste Maranhense, uma região onde a produção de soja cresceu 124% desde 2000, conforme levantamento da Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA).
Fazendeiros promoveram ataques químicos contra indígenas do povo Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Guyraroka, resultando em contaminação massiva de crianças, idosos e gestantes. Esta guerra química visa tornar a vida no local insuportável, forçando as famílias a abandonarem suas terras para dar lugar à expansão de monoculturas (soja, milho, cana-de-açúcar, etc.).
O principal tratado internacional que proíbe o uso de armas químicas é a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Estocagem e Uso de Armas Químicas e sobre a Destruição das Armas Químicas Existentes no Mundo (CPAQ), de 1993, o qual o Brasil é signatário. A Convenção faz uma ressalva crucial no Artigo I, que permite a posse e o uso de substâncias químicas tóxicas (como agrotóxicos ou produtos industriais) desde que sejam destinadas a “fins não proibidos” pela Convenção, ou seja, o uso como método de guerra ou para causar a morte, lesão ou incapacitação temporária de seres humanos.
Na carta da pré-cop dos Povos e Comunidades Tradicionais, coordenada pelo MIQCB e pela Rede PCTs do Brasil, não há nenhuma menção ao termo “carbono”. Na carta da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, também não.
Na primeira, contudo, há 26 menções ao “território”, e na segunda são 13 menções. Ambas trazem menção também ao “corpo”. Defender e preservar os corpos-territórios das quebradeiras de coco babaçu deve ser tão relevante quanto reduzir as emissões de gases do efeito estufa, e a ratificação pelo Brasil do Acordo de Escazú pode ser um grande passo.
Se as ideias para adiar o fim do mundo, como discute Ailton Krenak, historicamente vieram dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, e agricultores familiares, é dever de todos mantê-los vivos. Para além das medidas de emissão de carbono, dados de conflitos no campo precisam ganhar destaque no debate climático.






