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Raça não é uma ‘realidade biológica’ – veja como o consenso científico sobre raça se desenvolveu no século XX

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Raça não é uma ‘realidade biológica’ – veja como o consenso científico sobre raça se desenvolveu no século XX

Na recente enxurrada de ordens executivas do presidente dos EUA, Donald Trump, uma delas alertava sobre “uma narrativa distorcida” sobre raça “impulsionada pela ideologia e não pela verdade”. Ela destacou uma exposição atual no Smithsonian American Art Museum intitulada “The Shape of Power: Stories of Race and American Sculpture” como exemplo. A exposição exibe mais de dois séculos de esculturas que mostram como a arte produziu e reproduziu atitudes e ideologias raciais.

A ordem executiva condena a exposição porque ela “promove a visão de que a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que ‘a raça é uma invenção humana’”.

A ordem executiva aparentemente se opõe a sentimentos como este: “Embora a genética de uma pessoa influencie suas características fenotípicas, e a raça autoidentificada possa ser influenciada pela aparência física, a raça em si é uma construção social”. Mas essas palavras não são do Smithsonian. Elas são da Sociedade Americana de Genética Humana.

Cientistas rejeitam a ideia de que a raça é biologicamente real. A alegação de que a raça é uma “realidade biológica” vai contra o conhecimento científico moderno.

Sou um historiador especializado no estudo científico da raça. A ordem executiva coloca a “construção social” em oposição à “realidade biológica”. A história de ambos os conceitos revela como a ciência moderna chegou à ideia de que a raça foi inventada pelas pessoas, não pela natureza.

Raça existe, mas o que é ela?

Na virada do século XX, os cientistas acreditavam que os seres humanos poderiam ser divididos em raças distintas com base em características físicas. De acordo com essa ideia, um cientista poderia identificar diferenças físicas em grupos de pessoas e, se essas diferenças fossem transmitidas às gerações seguintes, o cientista teria identificado corretamente um “tipo racial”.

Os resultados desse método “tipológico” foram caóticos. Um Charles Darwin frustrado, em 1871, listou 13 cientistas que identificaram entre duas e 63 raças, uma confusão que persistiu pelas próximas seis décadas. Havia quase tantas classificações raciais quanto classificadores raciais porque não havia dois cientistas que chegassem a um acordo sobre quais características físicas eram melhores para medir, ou como medi-las.

Um problema intratável com as classificações raciais era o fato de que as diferenças nas características físicas humanas eram minúsculas e, por isso, os cientistas tinham dificuldade em usá-las para diferenciar os grupos. O pioneiro estudioso afro-americano W.E.B. Du Bois observou em 1906: “É impossível traçar uma linha de cor entre o negro e as outras raças… em todas as características físicas, a raça negra não pode ser diferenciada por si mesma”.

Mas os cientistas tentaram. Em um estudo antropológico de 1899, William Ripley classificou as pessoas usando o formato da cabeça, o tipo de cabelo, a pigmentação e a estatura. Em 1926, o antropólogo de Harvard Earnest Hooton, o principal tipologista racial do mundo, listou 24 características anatômicas, como “a presença ou ausência de um tubérculo pós-glenoidal e de uma fossa ou tubérculo faríngeo” e “o grau de curvatura do rádio e da ulna”, admitindo que “essa lista não é, obviamente, exaustiva”.

Toda essa confusão era o oposto de como a ciência deveria funcionar: à medida que as ferramentas se aprimoravam e as medições se tornavam mais precisas, o objeto de estudo – a raça – ficava cada vez mais confuso.

As esculturas de Malvina Hoffman ilustram um mapa intitulado Races of the World and Where They Live Malvina Hoffman/Field Museum of Natural History

Quando a exposição “Races of Mankind” da escultora Malvina Hoffman foi inaugurada no Field Museum de Chicago em 1933, ela caracterizava a raça como uma realidade biológica, apesar de sua definição elusiva. O antropólogo de renome mundial Sir Arthur Keith escreveu a introdução do catálogo da exposição.

Keith descartou a ciência como o método mais seguro para distinguir a raça; sabe-se a raça de uma pessoa porque “um simples olhar identifica as características raciais com mais certeza do que um grupo de antropólogos treinados”. A visão de Keith captou perfeitamente a ideia de que a raça deve ser real, pois ele a via ao seu redor, embora a ciência nunca pudesse estabelecer essa realidade.

No estudo científico da raça, entretanto, as coisas estavam prestes a mudar.

Cultura para explicar a diferença

Em 1933, a ascensão do nazismo deu mais urgência ao estudo científico da raça. Como escreveu o antropólogo Sherwood Washburn em 1944, “Se formos discutir questões raciais com os nazistas, é melhor que estejamos certos”.

No final da década de 1930 e início da década de 1940, duas novas ideias científicas se concretizaram. Em primeiro lugar, os cientistas começaram a considerar a cultura, e não a biologia, como o fator determinante das diferenças entre grupos de pessoas. Em segundo lugar, o surgimento da genética populacional desafiou a realidade biológica da raça.

Em 1943, os antropólogos Ruth Benedict e Gene Weltfish escreveram um pequeno trabalho também intitulado The Races of Mankind. Escrevendo para um público leigo, eles argumentaram que as pessoas são muito mais parecidas do que diferentes, e que nossas diferenças se devem à cultura e ao aprendizado, não à biologia. Posteriormente, um desenho animado deu maior circulação a essas ideias.

The Brotherhood of Man’ foi baseado no panfleto de Benedict e Weltfish e destacou que as diferenças entre as pessoas vêm de seus ambientes.

Benedict e Weltfish argumentaram que, embora as pessoas fossem, de fato, diferentes fisicamente, essas diferenças não faziam sentido, pois todas as raças podiam aprender e todas eram capazes. “O progresso na civilização não é monopólio de uma raça ou sub-raça”, escreveram. “Os negros fabricavam ferramentas de ferro e teciam tecidos finos para suas roupas quando os europeus de pele clara usavam peles e não sabiam nada de ferro”. A explicação cultural para os diferentes estilos de vida humanos era mais robusta do que os apelos confusos a uma elusiva raça biológica.

A guinada para a cultura foi consistente com uma profunda mudança no conhecimento biológico.

A pesquisa genética estava decolando na década de 1940, como neste laboratório da Faculdade Estadual de Iowa em Ames, Iowa. Jack Delano, U.S. Farm Security Administration/Office of War Information, CC BY

Uma ferramenta para entender a evolução

Theodosius Dobzhansky foi um proeminente biólogo do século XX. Ele e outros biólogos estavam interessados em mudanças evolutivas. As raças, que supostamente não mudavam com o tempo, eram, portanto, inúteis para entender como os organismos evoluíam.

Uma nova ferramenta, que os cientistas chamavam de “genética populacional”, era muito mais valiosa. O geneticista, segundo Dobzhansky, identifica uma população com base nos genes que ela compartilha para estudar as mudanças nos organismos. Com o tempo, a seleção natural moldaria a evolução da população. Mas se essa população não esclarecesse a seleção natural, o geneticista deveria abandoná-la e trabalhar com uma nova população baseada em um conjunto diferente de genes compartilhados. O ponto importante é que, independentemente da população escolhida pelo geneticista, ela estava mudando ao longo do tempo. Nenhuma população era uma entidade fixa e estável, como se supunha que fossem as raças humanas.

Sherwood Washburn, que por acaso era amigo íntimo de Dobzhansky, trouxe essas ideias para a antropologia. Ele reconheceu que o objetivo da genética não era classificar as pessoas em grupos fixos. O objetivo era entender o processo de evolução humana. Essa mudança reverteu tudo o que foi ensinado por Hooton, seu antigo professor.

Escrevendo em 1951, Washburn argumentou: “Não há como justificar a divisão de uma (…) população em uma série de tipos raciais” porque isso seria inútil. Presumir que qualquer grupo fosse imutável impedia a compreensão das mudanças evolutivas. Uma genética populacional não era “real”; era uma invenção do cientista que a usava como uma lente para entender a mudança orgânica.

Classificação para um propósito, não como uma avaliação ‘verdadeira’ de alto ou baixo. Buena Vista Images/Stone via Getty Images

Uma boa maneira de entender essa profunda diferença está relacionada às montanhas-russas.

Qualquer pessoa que tenha ido a um parque de diversões já viu placas que definem com precisão quem é alto o suficiente para andar em uma determinada montanha-russa. Mas ninguém diria que elas definem uma categoria “real” de pessoas “altas” ou “baixas”, pois outra montanha-russa pode ter uma exigência de altura diferente. As placas definem quem tem altura suficiente apenas para andar nessa montanha-russa específica, e isso é tudo. É uma ferramenta para manter as pessoas seguras, não uma categoria que define quem é “realmente” alto.

Da mesma forma, os geneticistas usam a genética populacional como “uma ferramenta importante para inferir a história evolutiva dos seres humanos modernos” ou porque tem “implicações fundamentais para entender a base genética das doenças”.

Qualquer pessoa que tente bater um prego com uma chave de fenda logo percebe que as ferramentas são boas para as tarefas para as quais foram projetadas e inúteis para qualquer outra coisa. A genética populacional é uma ferramenta para usos biológicos específicos, não para classificar as pessoas em grupos “reais” por raça.

Quem quisesse classificar as pessoas, argumentou Washburn, deveria apresentar as “razões importantes para subdividir toda a nossa espécie”.

A exposição do Smithsonian mostra como a escultura racializada foi “tanto uma ferramenta de opressão e dominação quanto de liberação e capacitação”. A ciência concorda com sua afirmação de que raça é uma invenção humana, e não uma realidade biológica.

*The Conversation U.S. recebe financiamento do Smithsonian Institution.

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