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Racismo linguístico: preconceito histórico contra idiomas indígenas e africanos persiste na educação brasileira

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Racismo linguístico: preconceito histórico contra idiomas indígenas e africanos persiste na educação brasileira

O Brasil é um país, inegavelmente, multilíngue. Quando os colonizadores atracaram suas naus, muitos dos quais dominando um português popular das esquinas de Lisboa, havia milhares de línguas sendo faladas em nosso território.

Embora a Constituição Federal de 1988 siga sendo um ponto monolíngue nessa história, instituindo apenas uma língua oficial (mais tarde, a Língua Brasileira de Sinais também foi adicionada), dezenas de línguas indígenas e africanas seguem sendo faladas no Brasil. Algumas co-existem com o Português como idiomas adicionais. Como nos quilombos de Tabatinga, em Minas Gerais e Cafundó, em São Paulo,. Também no âmbito das religiões afro-brasileiras, diferentes línguas africanas são utilizadas), mas de forma tímida e sem qualquer suporte educacional.

As origens do Português como língua única no Brasil

Em 1808, quando Dom João VI aportou por aqui, fugindo do cerco napoleônico, a corte portuguesa ignorou o fato de que havia séculos a língua falada no Brasil já não era mais o português de Camões. Mas foi exatamente essa língua, já ultrapassada, que o o rei de Portugal impôs ao país, por força de lei.

Dessa forma a Coroa autorizou cursos e estimulou uma política editorial a partir de um conceito monoglóssico de língua. E institucionalizou mais uma vez no Brasil o Português Europeu, coisa que o Marquês de Pombal fez primeiro em 1757, com o Diretório dos Índios.

A diferença é que, no século XVIII, a educação linguística não havia sido instrumentalizada completamente como um braço da infraestrutura do poder colonial. Apesar dela ser usada para referendar a língua de instrução aos indígenas e a transmissão de atos de ofício da Coroa Portuguesa, o governo colonial não chegou a criar uma infraestrutura de transmissão, como a escola e a imprensa, que unificasse a aplicação do Português em todo o país. Mas agora, no século XIX, o cenário era diferente. O português foi definitivamente imposto.

Nem Banto nem Tupi: Francês e Latim

Com a criação dos primeiros cursos jurídicos em 1827, também elegeram-se a língua de instrução e as línguas estrangeiras. Em 11 de agosto deste ano, uma nova lei referendou a aplicação de exames obrigatórios de Francês e Latim nas escolas, marginalizando ainda mais as línguas nativas de índigenas e africanos.

Além disso, o ápice da política linguística editorial no Brasil se deu nesse período. Houve uma imensa normatização do português falado até então nas ruas, numa tentativa oficial de se reaproximar o português brasileiro do português europeu.

Não por acaso, é desse período que conhecemos as principais obras literárias publicadas no país, os primeiros periódicos, todos estabelecidos em uma política monolíngue, que deliberadamente ignorava a imensa presença africana e indígena no português do cotidiano brasileiro.

Termos como os que conhecemos hoje, compondo o que chamamos de Pretuguês, e que são herança das línguas Bantu (cafuné, fubá, quitanda, moleque, muvuca, cachimbo, cuíca, quiabo, maxixe, banguela, cachaça etc.), já estavam perfeitamente naturalizados no Português do Brasil do século 19. Mas foram ignorados por essa política monolíngue.

Tradição de ensino bilíngue

Como se vê, o apelo por uma educação bilíngue no Brasil não é recente. Durante o Império, até seis línguas chegavam a ser ensinadas no ensino secundário, sempre com prevalência para línguas moderno-coloniais, que eram sinônimo de “civilização”. Da segunda metade do século 19 ao início do 20, francês e latim seguiram como as mais usuais. Mas nos anos 30, no ápice da Era Vargas, a ideia da formação plena do estudante começou a valorizar o ensino das línguas ditas modernas, o que aos poucos levou à introdução do inglês e ao abandono do latim.

Apesar das Reformas Francisco de Campos, na década de 30, e Gustavo Capanema, nos anos 1940, os anos subsequentes foram marcados pela cristalização da ideia de educação monolíngue e monoglóssica nas escolas brasileiros. Com isso, a LDB de 1961, reforçada pela de 1971, torna optativo o ensino de línguas estrangeiras nas escolas.

Ensino monolíngue, ideologia poliglota

É nesse capítulo em que estamos até então. Por um lado com um hiato de quase cinquenta anos sem uma política linguística referendada pelo Estado. Por outro, com uma mídia corporativa que valoriza a língua estrangeira como ferramenta de venda, sinônimo de status, num imaginário voltado para pessoas brancas e de classe média.

Nesse processo, com grandes empresas multinacionais atuando no país, à margem de uma política linguística real, tornou-se comum a implementação de conteúdos estrangeiros – especialmente livros didáticos da Grã-Bretanha e Estados Unidos – na formação da identidade linguística brasileira.

Nesse espectro, diversas ideologias linguísticas se multiplicaram. Desde a noção de que “não se aprende inglês na escola pública” até a ideia de que, para ser um bom presidente da República, é preciso falar inglês fluentemente…

Ironicamente, essa educação privada, cuja glossia referendada é a do inglês de algumas partes muito restritas do Norte Global, especialmente Estados Unidos e Inglaterra, nunca foi avaliada no país. Os cursos livres disponibilizados por essas plataformas, distribuidores de um pedigree linguístico de raça e classe, nunca sofreram um processo avaliativo como se dá com os estabelecimentos oficiais de ensino. O que prevalece no país é o mito de que qualquer ensino pago tem automaticamente mais excelência e qualidade que o ensino público.

A onda bilíngue atual

A recente onda de reimplementação da educação bilíngue em várias regiões do Brasil tem se dado, ao contrário do que ocorreu dois séculos atrás, a partir da expansão da educação regular pelo setor privado.

De acordo com dados da Associação Brasileira do Ensino Bilíngue, há hoje cerca de mil escolas bilíngues no país. A imensa maioria delas oferece inglês como língua de instrução parcial ou integral.

Obedecendo a um critério monolíngue, o uso do inglês como língua de instrução já foi testado em vários lugares do mundo a partir das mesmas ideologias linguísticas. No continente africano, como aqui se deu outrora com o português europeu, a instituição de normas de referência prestigiadas na escola gerou a ambiguidade de duas formas de se falar o inglês. Em alguns lugares, novas línguas se formaram, o inglês foi simplificado, e a tentativa monolíngue do Estado simplesmente falhou.

Aqui não será diferente, pois a história é o melhor ensaio para a própria história. Recentemente, estados brasileiros como o Maranhão e a Bahia, provaram profundo desconhecimento neste debate ao vislumbrar a contratação do setor privado como mediador da educação bilíngue. O Governo Flávio Dino chegou a planejar a implementação de uma educação bilíngue na escola pública com apoio da rede privada e, recentemente, professores do Estado da Bahia, dentre os quais me incluo, publicaram uma carta repudiando um projeto estadual de implementação de educação bilíngue no estado com apoio de uma empresa privada.

Na educação bilíngue, o avanço dos interesses corporativos

Com o avanço desse modelo de educação bilíngue, mediada pelo monolinguismo e pela monoglossia do inglês, o que temos hoje é a aproximação do país a uma das variantes do inglês, o inglês americano. Isso nem de longe é educação bilíngue. Aliás, o que se tem aí é o que o linguista belga Jan Blommaert já chamou de mercado de sotaques, isto é, o objetivo de ensinar sotaques e não línguas em sua pluralidade racial, social e política.

Eu tenho nomeado esse movimento de racismo linguístico no ensino de línguas, dado que a preferência por essas variantes obedece a uma reaproximação, por parte de uma diáspora branca no Brasil, a variantes do inglês falado por grupos majoritariamente brancos no Norte Global.

Com um passado multilíngue liderado por africanos e indígenas, a recente reimplementação de uma educação bilíngue reproduz a velha síndrome de país colonizado, que reitera conteúdos não produzidos por nós e para nós, mas sobre nós e para nos vender.

Com o hiato do Estado sobre uma verdadeira política linguística multilíngue e multiglóssica, o que se tem são metodologias forjadas no monolinguismo do inglês, radicada monoglossicamente em streamings internacionais.

Enquanto o Norte global é recivilizado pela diversidade educacional, com cada vez mais intelectuais combatendo a égide trumpista de instituição da língua única, aqui, ao contrário de valorizarmos o inglês com sotaque local, somos liderados por cadeias educacionais antinacionais que vendem o sotaque de Donald Trump, o inglês do Rei ou a língua franca da BBC.

O resultado disso é uma educação bilíngue falaciosa, vendida como produto neocolonial e com pouca identidade com o povo brasileiro. Na direção contrária, proponho uma educação linguística multiglóssica, liderada pelo Estado e pelos cientistas, com escuta ativa dos movimentos da sociedade e de suas línguas originárias e ancestrais. Uma educação com diversidade de línguas no currículo de forma optativa e instrumental para sujeitos de qualquer raça, classe, gênero e orientação sexual, sem o uso dessas línguas para processos de avaliação excludente.

Não se aprende línguas e jamais se aprenderá em contextos opressivos, cuja avaliação serve para excluir e referendar formas de desigualdade racial e política. O contrário da falácia é a necessidade de uma rediscussão política nacional do papel da educação linguística, da valorização da primeira língua dos falantes, e da diversificação dos repertórios linguísticos oferecidos pela escola para e com a sociedade.

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