Na segunda série de artigos publicada em parceria com a revista FCW Cultura Científica, da Fundação Conrado Wessel, instituição de fomento à divulgação científica brasileira, autoras e autores investigam os impactos das redes sociais na sociadade. Neste texto inaugural, o diretor-presidente da FCW, Carlos Vogt, e o editor-executivo da revista FCW Cultura Científica, Heitor Shimizu, afirmam que, se as redes romperam os monopólios tradicionais da mídia e aceleraram transformações, ao mesmo tempo ampliaram o isolamento, a ansiedade, a depressão e se transformaram em campos de batalha para conflitos políticos, disseminação de fake news e de discursos antidemocráticos, de ódio e intolerância.
As raízes das redes sociais estão fincadas na década de 1980, quando os Bulletin Board Systems (BBS) permitiam que usuários trocassem mensagens e arquivos por meio de conexões discadas. Na década seguinte, na esteira da invenção da web, surgiram comunidades como GeoCities e fóruns que pavimentaram o caminho para plataformas focadas em socialização. O MySpace, lançado em 2003, se popularizou entre músicos e jovens, e o Orkut, de 2004, foi muito usado no Brasil e na Índia. Em 2007, a Apple lançou o iPhone, com tela sensível ao toque e capacidade de navegar pela internet, trocar mensagens e imagens e acessar as redes sociais. Em 2008, o Google lançou o sistema operacional Android e, no ano seguinte, o WhatsApp foi criado.
Desde então, muita coisa mudou. O mundo foi derrubado por uma crise financeira, nocauteado por uma pandemia e agora se vê diante de uma ameaça maior que as duas juntas, a crise climática. Vimos a eleição de Barack Obama e sua reeleição; as duas eleições de Donald Trump; a Primavera Árabe; a morte de Osama bin Laden; a Guerra na Síria; a ascensão do Estado Islâmico; o acidente nuclear de Fukushima; o Brexit; o impeachment de Dilma Rousseff; a ascensão e a inelegibilidade de Jair Bolsonaro; o retorno de Lula; o avanço do populismo, do extremismo e das crises democráticas; a invasão da Ucrânia pela Rússia; e o grande avanço da inteligência artificial. Acompanhamos todas essas transformações cada vez menos jornais e redes de tevê e cada vez mais pelas redes sociais.
Redes se transformam em arenas de hostilidade
Em menos de 20 anos, as redes sociais se expandiram para os bolsos e bolsas de pessoas em todo o mundo. Segundo estimativas, 5,2 bilhões, cerca de 64% da população mundial, atualmente usam redes sociais.
As plataformas digitais encurtaram distâncias, democratizaram o acesso à informação e diversificaram as narrativas ao romper com os monopólios da mídia tradicional. Tornaram-se espaços de mobilização social e de visibilidade para causas, ao mesmo tempo em que impulsionaram oportunidades econômicas, fomentando o empreendedorismo digital, a economia criativa e a colaboração em escala global.
Se as redes sociais aproximam vozes distantes, elas afastam silêncios próximos. O toque da notificação substitui o toque humano; a curtida dispensa a conversa; a presença constante nas telas rouba a presença real no mundo. Sob o pretexto da liberdade de expressão, transformaram-se em arenas de hostilidade, onde gritar é mais eficaz do que argumentar. A rapidez da postagem atropela a reflexão, e o julgamento instantâneo substitui qualquer tentativa de compreensão. Surgem então os linchamentos morais, os tribunais da indignação, o prazer perverso de destruir reputações em praça pública.
A utopia digital cede lugar a uma distopia cotidiana, disfarçada de conveniência e conexão. Vende-se intimidade, mas entrega-se vigilância. Vivemos imersos em um ruído incessante, onde a atenção é explorada, disputada e monetizada como nunca antes. Diante desse cenário, o desafio maior talvez seja recuperar o silêncio, o tempo, e a verdade. Desconectar, para enfim reencontrar-se.
O impacto não se limita ao ambiente virtual. Pesquisas mostram uma correlação preocupante entre o uso intensivo das redes e o aumento de casos de ansiedade, solidão e depressão, especialmente entre jovens, chegando até mesmo a desafios que resultam em mortes. A lógica algorítmica das plataformas, voltada ao engajamento a qualquer custo, prioriza conteúdos extremos, polarizadores ou sensacionalistas – alimentando uma espiral emocional que prende o usuário e distorce sua percepção da realidade. A busca por curtidas e validação social transforma a vida em vitrine, gerando frustração, comparação constante e uma sensação crônica de inadequação.
De ferramentas de mobilização a espaços de radicalização e manipulação
No campo político, o cenário também é alarmante. As redes sociais deixaram de ser apenas ferramentas de mobilização para se tornarem espaços de radicalização e manipulação. Fake news se espalham mais rápido do que fatos, impulsionadas por robôs e campanhas coordenadas. O debate público, cada vez mais contaminado por agressões e desinformação, perde qualidade e profundidade. Enquanto isso, as grandes empresas de tecnologia que controlam as redes relutam em assumir a responsabilidade pelos danos causados, alegando neutralidade e liberdade de expressão.
No centro dessa engrenagem estão os algoritmos de inteligência artificial, cujo objetivo principal é manter o usuário conectado o maior tempo possível. Mas essa lógica de retenção não é neutra: ela é moldada por interesses comerciais, priorizando conteúdos que geram mais cliques, comentários e compartilhamentos, independentemente da veracidade ou qualidade. O faturamento se sobrepõe ao bem-estar do usuário e a propaganda – cada vez mais personalizada e invasiva – se infiltra em todos os aspectos da experiência digital. Não é coincidência que discursos de ódio, fake news e sensacionalismo prosperem: são altamente lucrativos dentro dessa arquitetura da vigilância e do consumo.
Nesse ecossistema movido por curtidas, influenciadores digitais ocupam posição central, vendendo estilos de vida, opiniões e produtos, muitas vezes sem preparo ou compromisso ético. Sua autoridade vem da popularidade, não do conhecimento, o que confunde informação com opinião disfarçada. Muitos promovem padrões irreais de sucesso e beleza, alimentando inseguranças e consumo excessivo. Outros espalham desinformação, pseudociência e teorias conspiratórias, com impacto direto em decisões pessoais e coletivas.
Adolescentes encontram locais de escuta nas comunidades virtuais
Enquanto a atenção do público adulto e da mídia se concentra nas grandes plataformas, como Instagram e TikTok, uma parte significativa da vida digital dos jovens ocorre em espaços menos visíveis – e, por isso mesmo, menos regulados. Plataformas como Discord, originalmente criada para comunidades de jogos, transformaram-se em universos paralelos, onde grupos formam comunidades fechadas, imunes ao olhar dos pais, educadores e autoridades. Nessas redes, circulam de conversas inofensivas a conteúdos violentos, discurso extremista, pornografia e tráfico de dados pessoais. A linguagem própria, o uso intensivo de memes e a estrutura em servidores privados criam uma dinâmica de pertencimento que, ao mesmo tempo que acolhe, pode também facilitar o aliciamento, o bullying e a radicalização. Trata-se de uma fronteira digital pouco explorada, mas crucial para entender os riscos contemporâneos da socialização online.
Além das redes sociais tradicionais, plataformas de comunicação como WhatsApp e Telegram desempenham papéis cruciais nesse cenário de polarização e desinformação. Enquanto o WhatsApp, com sua popularidade massiva, se tornou um terreno fértil para a disseminação de fake news e boatos, o Telegram se destaca por abrigar grupos extremistas e teorias conspiratórias, onde a falta de regulação facilita a troca de conteúdos proibidos e discursos de ódio.
“O que torna esses espaços tão perigosos não é apenas o conteúdo explícito, mas o fato de funcionarem como locais de escuta para os adolescentes. Em nossas pesquisas, os jovens frequentemente relatam que os adultos não os escutam – nem os pais, nem os professores. Nas comunidades virtuais, os adolescentes encontram locais de escuta, onde são compreendidos pelos outros usuários. São o que chamamos de câmaras de eco”, disse a professora Telma Vinha, coordenadora do Grupo de Estudos Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública da Unicamp, em outra entrevista nesta edição.
Transformação da esfera pública
O conceito de esfera pública foi desenvolvido pelo filósofo alemão Jürgen Habermas nos anos 1960. A esfera pública seria o espaço em que cidadãos se reúnem para debater assuntos de interesse comum, trocando argumentos racionais de maneira livre, sem coerção – um dos pilares essenciais da democracia. Com o advento da internet e, especialmente, das redes sociais, muitos acreditaram que esse espaço seria ampliado, democratizando o acesso ao debate público.
Inicialmente, plataformas como Facebook, Twitter e YouTube pareciam cumprir essa promessa, oferecendo canais diretos para a participação cidadã e a mobilização de movimentos sociais. No entanto, a realidade se mostrou mais complexa e o ideal habermasiano de uma esfera pública única e racional deu lugar a múltiplas esferas públicas fragmentadas, muitas vezes isoladas e conflitantes, como destacou a filósofa norte-americana Nancy Fraser. As redes sociais, em vez de promover um debate aberto e construtivo, frequentemente priorizam o conteúdo que gera mais emoções (como raiva e indignação) em detrimento de discussões racionais. Elas fragmentam o público em bolhas ideológicas, cada uma com sua própria “verdade” e reduzem o tempo de atenção, dificultando reflexões mais profundas.
A premissa de proximidade, de manter amigos por perto e de criar novas comunidades esconde uma dinâmica paradoxal: quanto mais tempo passamos online, menos vínculos profundos cultivamos fora das telas. As interações digitais, superficiais e filtradas, substituem os encontros reais, empobrecem a empatia e reforçam bolhas de pensamento.
“No mundo digital, surgem novos intermediários: os influenciadores, as ‘bolhas’ construídas nesses ambientes virtuais. São territórios virtuais muito menos regulados do que os territórios do mundo pré-digital e acabamos delegando a esses novos intermediários parte dos nossos próprios processos mentais – inclusive processos fundamentais, como a produção da verdade, a percepção do mundo, o próprio acesso ao real”, disse a professora Letícia Cesarino, coordenadora do Laboratório de Humanidades Digitais na Universidade Federal de Santa Catarina.
Ao oferecerem espaço para a livre expressão, as redes frequentemente alimentam ambientes tóxicos. A ausência de mediação e a cultura do anonimato tornam comuns o linchamento virtual, o discurso de ódio e o cyberbullying. A crítica vira ataque, o debate vira guerra, e a vulnerabilidade de muitos é explorada como espetáculo. E, quando a lógica da viralização supera qualquer senso de responsabilidade, conteúdos perigosos ou criminosos se espalham com velocidade assustadora.
Esse tipo de ambiente, que evita o confronto com outras narrativas, permite que ideias absurdas ganhem o status de ‘verdade absoluta’ dentro desses nichos. O que a literatura chama de fake news surge aí. “Nas redes sociais, qualquer discurso, sem o devido embasamento, pode ser tratado como verdade, independentemente da sua qualidade ou veracidade. O jornalismo profissional, a ciência, a escola – essas instituições perderam sua autoridade, e hoje tudo virou apenas opinião”, afirma o professor Luis Felipe Miguel, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades da Universidade de Brasília.
Entre os muitos efeitos colaterais das redes sociais, talvez o mais insidioso seja o enfraquecimento do senso crítico, que precisa de tempo, silêncio e contraste para se desenvolver. No fluxo ininterrupto de informações, opiniões e certezas instantâneas, pensar se torna um ato contracorrente. A lógica das redes valoriza a reação imediata, não a ponderação; o slogan, não a dúvida; o alinhamento automático, não a reflexão autônoma.
Nesse ambiente em que tudo se apresenta com igual peso, a distinção entre o essencial e o descartável se dissolve. O pensamento superficial se instala, alimentado por uma overdose de estímulos que impede qualquer aprofundamento. Como exercitar o juízo quando tudo é ruído, e a própria dúvida é vista como fraqueza? A cultura digital molda mentes apressadas, ansiosas por pertencimento, mas pouco habituadas ao confronto com a complexidade. E sem senso crítico, deixamos de ser sujeitos. Passamos a ser apenas alvos, cliques e estatísticas.
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