A União Europeia já se orgulhou de ser uma “potência normativa” – uma região cuja influência não se originava da força militar, mas de sua capacidade de estabelecer regras e normas de comportamento que o resto do mundo seguia. Durante anos, esse “Efeito Bruxelas”, como cunhado pelo acadêmico de direito Anu Bradford, tem funcionado no âmbito digital.
O impacto da UE é particularmente evidente na proteção de dados, com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) tendo inspirado uma onda de legislação semelhante do Brasil e do México à África do Sul e à Índia. Mas agora, como a Europa enfrenta pressões externas crescentes de Washington e do Vale do Silício e tem debates internos sobre a simplificação da regulamentação para impulsionar a inovação, surgiram dúvidas sobre a força e a eficácia de sua liderança regulatória.
O Brasil oferece o estudo de caso perfeito de um país com a mesma mentalidade que tem seguido o modelo regulatório da Europa, primeiro com uma legislação de privacidade que espelha o GDPR e, agora, com uma proposta de Lei de Mercados Digitais (Digital Markets Act, em inglês, ou DMA) que ecoa a DMA da UE, com o objetivo de controlar os gigantes da tecnologia.
Mesmos alinhamentos regulatórios, diferentes aplicações da lei
Os legisladores brasileiros deram passos significativos em direção ao alinhamento regulatório com a UE, sendo o exemplo mais notável a adoção da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), inspirada no GDPR. Outro exemplo poderia ser o Projeto de Lei sobre Plataformas Digitais do Brasil (PL 2768/2022), atualmente em deliberação na Câmara dos Deputados do Brasil, que intencionalmente espelha o DMA da UE em seu esforço para evitar práticas anticompetitivas entre plataformas digitais dominantes. A deputada Any Ortiz, relatora do projeto de lei, declarou explicitamente que eles estão “observando como o DMA está sendo implementado na UE em particular, para que tenhamos elementos mais sólidos para implementar e discutir a regulamentação”.
Embora inspirado nas regulamentações da UE, o Brasil seguiu um caminho diferente. Ao contrário dos limites da UE que visam apenas as maiores empresas, a proposta do Brasil se aplica a uma gama muito mais ampla de empresas – incluindo startups locais – devido ao seu baixo limite de receita e à falta de uma definição abrangente do termo “poder de controle de acesso significativo”.
A aplicação da lei é outra diferença importante: enquanto a UE depende das autoridades de concorrência, o Brasil delega a supervisão à Agência Nacional de Telecomunicações, expandindo o escopo regulatório e levantando preocupações sobre o excesso de regulamentação que poderia prejudicar a inovação.
Desafios semelhantes face ao cenário geopolítico atual
Embora motivadas por causas diferentes, as duas economias enfrentam desafios semelhantes para equilibrar inovação e regulamentação em um cenário geopolítico cada vez mais complexo. Essa tensão foi exemplificada quando o Presidente Trump emitiu uma diretiva caracterizando a regulamentação digital da UE como uma “exploração injusta da inovação americana”.
As autoridades europeias, em resposta, responderam com a carta dos legisladores de tecnologia e concorrência da Comissão Europeia às autoridades dos EUA, refutando as alegações de Trump sobre a erosão da liderança tecnológica dos EUA. Eles enfatizaram que as regras não são direcionadas exclusivamente às empresas americanas, citando investigações sobre empresas como a Booking.com, sediada na Europa, e a TikTok, da China.
Do ponto de vista do Brasil, essas tensões transatlânticas destacam a possibilidade de a UE não ser o parceiro regulatório confiável que o país esperava – e que a UE pode estar recuando em suas ambições regulatórias no cenário internacional.
O Brasil teme ficar isolado em seus esforços para regulamentar as grandes tecnologias se a UE enfraquecer sua posição, tornando mais difícil a implementação de seu próprio “DMA brasileiro” e diminuindo sua influência nas negociações internacionais.
No entanto, a UE demonstrou recentemente credibilidade em seu compromisso de aplicar o DMA, impondo multas de 700 milhões de euros à Apple e à Meta por violações antitruste. Embora essas multas estejam bem abaixo da penalidade máxima do DMA – até 10% do faturamento global de um gatekeeper no ano fiscal anterior – elas deixam espaço para outras ações. Se a não conformidade continuar, a Comissão poderá impor multas periódicas de até 5% do faturamento global médio diário de uma empresa. Essa abordagem dá à Comissão a flexibilidade para aumentar a fiscalização se essas empresas continuarem a violar as regras.
Reação das Big Techs
As tensões surgiram quando um porta-voz da Casa Branca reagiu chamando as multas de uma forma de “extorsão”, enquanto Meta acusou a Comissão de tentar “prejudicar as empresas americanas bem-sucedidas e permitir que as empresas chinesas e europeias operem sob padrões diferentes”. No entanto, poucos dias antes do anúncio das multas, a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, enfatizou que a aplicação da lei seria feita “independentemente da origem da empresa e de quem a dirige”.
Embora a recente aplicação do DMA pela UE reafirme seu compromisso com a regulamentação, ainda há muito a ser visto – e os EUA estão mostrando seus dentes. Não se sabe ao certo quanta pressão a UE ou o Brasil podem suportar sozinhos. Entretanto, uma aliança mais forte entre os dois poderia servir de modelo para a cooperação internacional que protege a soberania digital e promove a concorrência justa no cenário global.