A medicina do século XXI está em meio a uma profunda transformação. Atualmente, recursos como a medicina de precisão (tratamentos personalizados com base no perfil genético), o uso de robôs em cirurgias minimamente invasivas e a aplicação de algoritmos de aprendizado de máquina no diagnóstico de doenças já fazem parte da rotina de vários hospitais. São tecnologias que melhoraram os diagnósticos e a indicação dos tratamentos, aumentando as chances de controle e cura de doenças e a qualidade de vida dos pacientes.
O próximo passo, porém, será ainda mais disruptivo. O avanço que promete mudar de forma radical a medicina é a nova tecnologia quântica 2.0. Sua base é a mecânica quântica, uma teoria formulada há mais de cem anos para descrever o comportamento das partículas em escalas microscópicas. No decorrer do século XX, essa teoria deu origem ao que chamamos de tecnologias quânticas 1.0. Elas moldaram o mundo moderno com o surgimento dos lasers, ressonância magnética, semicondutores e, claro, de computadores.
A era das tecnologias quânticas 2.0 explora propriedades ainda mais sutis da mecânica quântica, como a superposição e o emaranhamento. São esse princípios que revolucionarão a maneira como a física contemporânea poderá simular, prever e solucionar os desafios mais complexos da atualidade na saúde e em outras áreas do conhecimento.
As tecnologias quânticas de segunda geração se dividem em três grandes áreas. A primeira é a computação, campo em que busca resolver problemas de maneiras fundamentalmente novas. A segunda é a comunicação, focada em garantir trocas de informação ultra seguras e, por fim, os sensores, um setor que promete medições com uma precisão sem precedentes. O potencial de aplicação de cada uma dessas frentes na saúde é enorme e pode reconfigurar desde a forma como diagnosticamos doenças até o desenvolvimento de novos tratamentos.
Mais precisão e velocidade
A computação quântica, com sua capacidade única de processar sistemas complexos, promete um impacto profundo na saúde. Seu potencial se manifesta desde a aceleração no desenvolvimento de fármacos, ao simular moléculas que se tornarão novos medicamentos com precisão atômica, até a análise profunda da genômica para desvendar as raízes de doenças complexas.
No campo clínico, essa mesma capacidade pode viabilizar, por exemplo, a geração de dados sintéticos realistas, um recurso fundamental para o avanço seguro da inteligência artificial na medicina. Pode também aprimorar muito os diagnósticos por viabilizar a detecção de padrões delicados em exames. Na análise de sinais biomédicos, como em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), essas capacidades podem ser vitais. Nesse ambiente, a computação quântica pode oferecer não apenas a precisão para identificar um sinal de deterioração até então imperceptível em meio ao ruído de um Ecocardiograma (ECG), mas também conferir a agilidade necessária para alertar a equipe médica em tempo real.
A computação quântica ainda está em fase inicial de desenvolvimento, e por isso ainda não está em uso na medicina ou em outras áreas, mas outras tecnologias quânticas já demonstram maturidade e aplicações mais imediatas. A comunicação quântica, por exemplo, pode oferecer canais para a troca de dados sensíveis entre hospitais e laboratórios, protegendo informações médicas contra ataques cibernéticos.
Entre as inovações mais promissoras na saúde estão os sensores quânticos. São compostos por entes quânticos extremamente sensíveis, o que pode viabilizar desde exames de imagem com maior resolução e menor dose de radiação até a detecção precoce de doenças neurodegenerativas por meio da identificação de variações sutis em campos magnéticos cerebrais. Em ambientes clínicos, esses sensores também podem monitorar sinais vitais com precisão sem precedentes, abrindo caminho para diagnósticos mais rápidos, menos invasivos e mais eficazes.
As iniciativas brasileiras
Não por acaso, a transformação tecnológica já mobiliza bilhões de dólares em investimentos públicos e privados ao redor do mundo. Estima-se que o financiamento global em tecnologias quânticas tenha ultrapassado US$ 55 bilhões em 2025, com projeções que apontam para US$ 106 bilhões até 2040.
Países como Canadá, Alemanha e Reino Unido já estruturaram estratégias nacionais em saúde que incluem aplicações diretas, especialmente por meio de sensores quânticos e infraestrutura de dados segura. A China, por sua vez, lidera em volume de investimento e se consolida como protagonista nesse novo cenário tecnológico.
O Brasil, após décadas de investimento modesto, começa enfim a sinalizar uma mudança de postura. Um dos principais focos tem sido a formação de recursos humanos, sobretudo nas universidades, onde grupos de excelência em física e ótica quântica vêm se consolidando ao longo das últimas três décadas.
Iniciativas como o Instituto do Milênio, os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (INCT-IQ) e, mais recentemente, o Instituto Nacional de Computação Quântica Aplicada (INCT-CQA) têm desempenhado papel central na capacitação de um corpo técnico altamente qualificado.
No entanto, a ausência de perspectivas fora (e mesmo dentro) do ambiente acadêmico tem levado muitos desses cérebros a buscar oportunidade no exterior. Quando falamos em infraestrutura, a situação é ainda mais crítica. Devido à uma escassez histórica de recursos financeiros, mesmo dentro das universidades, pesquisadores dedicados ao desenvolvimento de hardware quântico enfrentam enormes dificuldades.
Ponto de ruptura e transformação
Apesar do entusiasmo crescente, é preciso separar o hype(estado de grande expectativa) da realidade. Os avanços recentes em tecnologias quânticas, especialmente no desenvolvimento de algoritmos e na forma como construímos, manipulamos e protegemos a informação quântica, são inegáveis. Eles já possibilitam aplicações práticas pontuais e permitem afirmar que a revolução já começou. Prova disso são resultados que vão desde a simulação de materiais quânticos (com uma precisão já considerada fora do alcance dos supercomputadores clássicos mais avançados) até aplicações em aprendizado de máquina, em que métodos quânticos para mapeamento de dados já demonstraram um aumento significativo na acurácia para resolver problemas práticos.
De forma gradual e daqui por diante mais acelerada, começaremos a nos familiarizar com as aplicações das tecnologias quânticas 2.0. No entanto, desafios importantes permanecem. Na computação quântica, por exemplo, manter a estabilidade dos qubits, desenvolver métodos eficazes de correção de erros e escalar os dispositivos para uso amplo são questões que ainda exigirão muitos esforços científicos e investimentos substanciais.
Se apenas hospitais de ponta e países ricos puderem custear a tecnologia quântica 2.0, a desigualdade em saúde se aprofundará, restringindo os tratamentos mais avançados a uma minoria. Ampliar o acesso, portanto, configura um desafio ainda mais complexo do que o enfrentado com as primeiras aplicações quânticas, como o laser, justamente pelo alto custo das novas tecnologias.
Seguramente, vivemos um ponto de inflexão histórico, em que a ciência, a tecnologia e a medicina se emaranham na construção de um novo futuro para a saúde em escala global. Isso também envolve questões éticas e sociais profundas, como a proteção de dados sensíveis e o acesso equitativo aos avanços terapêuticos.