Mais de 6,5 milhões de brasileiros vivem com algum grau de deficiência visual, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre essas pessoas, cerca de 500 mil são cegas e outras seis milhões possuem baixa visão. São milhões de indivíduos que enfrentam barreiras para acessar informações visuais que, para a maioria das pessoas, são automáticas e naturais, como reconhecer rostos, ler placas ou perceber cores.
A cor, em particular, está em tudo no nosso dia a dia: no semáforo, nas embalagens, nos ambientes, nas roupas, nos alimentos. É um tipo de dado essencial, mas raramente pensamos que ele pode ser inacessível. Afinal, como saber que uma maçã está madura, que um botão é vermelho ou que um sinal está aberto, se não é possível enxergar?
Tocando as cores
Foi com esse desafio em mente que desenvolvi o See Color, um sistema de linguagem tátil que permite identificar cores com as mãos. A ideia surgiu durante meu doutorado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), como parte de um projeto interdisciplinar voltado à criação de tecnologias assistivas, em parceria com outras cinco universidades brasileiras.
Como artista plástica, sempre estive envolvida com o universo das cores. Mas foi nessa experiência que compreendi o quanto a cor, além de estética, é também acesso, autonomia e cidadania.
Minha proposta foi elaborar algo diferente do sistema Braille, que, embora essencial, tem limitações. O Braille exige espaço para aplicação, o que dificulta seu uso em objetos do dia a dia, e seu aprendizado pode ser desafiador, especialmente para pessoas que perdem a visão na vida adulta. Além disso, trata-se de uma linguagem baseada no alfabeto, ou seja, varia conforme o idioma de cada país.
Inspirada pela Teoria das Cores, que é universal, e por algo bem conhecido de todos nós, o relógio analógico, criei um raciocínio simples e de fácil memorização: cada cor primária, secundária ou neutra é representada por um código baseado na posição dos ponteiros do relógio.
Por exemplo, a posição das “dez horas” representa o roxo; “seis horas”, o verde; “doze horas”, o vermelho. São oito posições ao todo. Além disso, pontos adicionais ao lado do eixo indicam tonalidades claras ou escuras, e um semicírculo ao redor do código representa cores metálicas. Com essas variações, quase 100 cores diferentes podem ser identificadas apenas com o tato.
O método é patenteado pela UFPR, o que garante sua originalidade e valor como inovação. Mas, desde o início, compreendi que não bastava criar um sistema funcional. Era fundamental que ele chegasse, de fato, às mãos das pessoas. Por isso, desenvolvi também kits pedagógicos para facilitar o aprendizado da linguagem tátil das cores. Eles são voltados tanto para crianças quanto adultos com deficiência visual, assim como para educadores, instituições e interessados em geral.
O material foi pensado para ser lúdico e acessível. Além de ensinar o código, apresenta os conceitos fundamentais da Teoria das Cores, promovendo autonomia e aprendizado prático. Os testes realizados em escolas revelaram mais do que a eficácia do método, mostraram o entusiasmo dos alunos. Em uma das turmas, os próprios estudantes se organizaram em grupos, vendaram os olhos e se desafiaram a identificar as cores pelo tato. O engajamento foi tão grande que ninguém queria que a aula acabasse.
Tecnologia universal
De Norte a Sul do Brasil, o See Color tem se espalhado cada vez mais, o que é um grande motivo de orgulho para mim. Em Borba, no Amazonas, por exemplo, Dilma Lopes encontrou no sistema uma maneira de se reconectar com o mundo das cores, após perder a visão na adolescência. Já no Rio Grande do Sul, o professor de música Tiago Bicz passou a utilizar o método em seu cotidiano. Para ele, a linguagem do See Color representa independência e autonomia.
Apesar do grande potencial, o projeto ainda enfrenta desafios para ganhar escala. Para ampliar o alcance da iniciativa e viabilizar sua inserção em políticas públicas, um dos próximos passos é a criação de um instituto voltado exclusivamente ao See Color. A proposta é consolidar uma estrutura capaz de firmar parcerias, captar recursos e formar voluntários, garantindo a continuidade e a expansão do projeto.
Mesmo com os obstáculos, o reconhecimento já começou a se concretizar. Em 2024, a Universidade Federal do Paraná recebeu o IUAD Award – Bronze, concedido pela International Association of Universal Design (IAUD), do Japão, em homenagem ao See Color. No Brasil, o projeto foi destaque em diversas premiações, como o Prêmio Viva Inclusão (2018), o Prêmio Empreendedora Curitibana (2019), o Prêmio Curta Ciência (2019) e o Prêmio Sérgio Mamberti, do Ministério da Cultura (2024).
As conquistas mais recentes vieram com o Brics Women’s Startup Contest 2025, promovido pelo Sebrae, no qual fui uma das vencedoras na categoria Educação e Desenvolvimento de Competências; e com uma menção honrosa feita pela Assembleia Legislativa do Paraná, em alusão à Semana da Pessoa com Deficiência.
Tudo isso reforça a importância de desenvolver tecnologias universais, que funcionem para todos e não apenas para um grupo específico. É por essa razão que acredito no potencial do See Color para transformar a educação. Em vez de ser um recurso isolado para pessoas com deficiência, o método pode ser adotado em escolas regulares, estimulando desde cedo o aprendizado coletivo, a empatia e a inclusão.
Ver com as mãos é possível. E, com isso, podemos colorir o mundo de mais gente. O See Color nasceu da interseção entre arte, ciência e empatia, mostrando como a universidade pública gera conhecimento com impacto real na vida das pessoas. O que antes era invisível, agora pode ser sentido e compartilhado.
Colaboraram com este artigo as divulgadoras científicas Ana Paula Machado Velho e Maria Eduarda de Souza Oliveira, do Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação – NAPI Paraná Faz Ciência








