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Sinhás pretas: série de livros retrata a vida de ex-escravizadas que enriqueceram no Brasil

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Sinhás pretas: série de livros retrata a vida de ex-escravizadas que enriqueceram no Brasil

O testamento de uma certa Maria do Rosário, redigido em 1771 na cidade de São João Del Rey, em Minas Gerais, declarava que:

Sou natural da Costa da Mina, de donde vim pequena para esta terra não tenho herdeiro algum ascendentes ou descendentes nesta ou naquela — porque todos ficaram na minha pátria na gentilidade e sou forra e liberta de toda escravidão e nunca fui casada com pessoa alguma; declaro que os bens que possuo há de constar pelo meu falecimento e inventário que se farão os quais foram por mim adquiridos sem favor de pessoa alguma.

A origem do meu interesse por estudar as mulheres pretas vindas da África, denominadas de “mina”, começou por leituras que fiz de trabalhos de historiadores e demógrafos que utilizaram mapeamentos populacionais ou listas nominativas dos séculos XVIII e XIX. Eram planilhas elaboradas por freguesia (a forma como eram divididas administrativamente as comarcas), que listavam os domicílios e seus componentes por nome, idade, origem, condição social (se livre ou escravizado) e produção, entre outros dados, de várias regiões do Brasil. Esses documentos indicavam que havia uma proporção expressiva de mulheres chefiando domicílios especialmente em áreas urbanas, 30% ou 40% deles.

As análises, entretanto, explicavam esse perfil como resultado da pobreza dessas mulheres. Sim, realmente eram pobres, assim como a grande maioria dos demais domicílios liderados por homens. Mas havia algo errado. Por que classificar só as mulheres como pobres?

Constatei que algumas delas, com certeza uma minoria, eram pretas, nascidas na África, ou descendentes de escravizadas, chamadas “crioulas”. Diante desse panorama, resolvi pesquisar também as mulheres pretas libertas, tanto no momento da alforria registrada em cartório, a mais visível, como as concedidas em testamentos.

Da escravidão à riqueza

Entrei em um universo denso e complexo, porque compilei testamentos e inventários de centenas de mulheres, do século XVIII até a primeira metade do XIX, de duas cidades: Rio de Janeiro e São João Del Rey. E foi um deslumbramento constatar que muitas dessas mulheres alforriadas ficaram ricas. Começaram na pior condição possível, capturadas em suas terras, traficadas e escravizadas. Mas conseguiram sucesso material visível, tornando-se proprietárias de imóveis, donas de joias e, em muitos casos, de outras mulheres escravizadas.

Eram elas, especialmente as pretas-minas, oriundas da Costa Ocidental da África, que compravam com recursos próprios suas liberdades e tinham acesso a bens diferenciados.

Maria do Rosário, autora do testamento reproduzido acima, foi taxativa: seus bens foram adquiridos “por mim, sem favor de pessoa alguma”.

E ela não foi a única. Centenas declararam o mesmo. E consideravam suas escravizadas e “crias” (crianças nascidas de suas escravizadas) como suas próprias famílias.

As dores profundas e o árduo trabalho dessas mulheres em suas reinvenções para formar famílias, não só das que ficaram ricas, moldam nossos sentimentos familiares atuais. Todas nós, mulheres brasileiras, somos tributárias delas, mesmo quando não carregamos na pele o estigma da cor.

Como mulheres, sofremos preconceito de gênero. Até mesmo historiadores e historiadoras nos consideram peças pouco importantes na construção da sociedade brasileira. Mas as heranças africana e indígena estão em nós impregnadas, apesar de um verniz ocidental.

Francisca Maria Tereza, da Costa da Mina, chefe de domicílio, sem filhos, em 1776, na cidade do Rio de Janeiro, deixou claro em seu testamento que sua casa deveria ser destinada a suas ex-escravizadas e crias, consideradas por ela como sua família:

“E toda esta minha família viverão [sic] unidas sem que possam dispor tudo ou parte das ditas casas (…) E deixo às minhas escravas e família acima declarada o remanescente de meus bens satisfeitos que sejam meus legados”.

Registro de uma mulher negra, comerciante, entre frutas e objetos em uma venda de rua na cidade do Rio de Janeiro, no século XIX. Marc Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles

A memória de Florinda e de outras mulheres

“Sinhás pretas, damas mercadoras – As pretas-minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del-Rey (1700-1850)” é o primeiro livro da série Crioula, que vem a público pela editora Cosac. É uma forma de resgatar a memória dessas mulheres e homenageá-las.

A concepção da série Crioula começou em um projeto envolvendo a produção do livro “Preciosa Florinda”, lançado em 2024. A personagem, Florinda, é uma mulher negra que foi fotografada em Salvador, na Bahia, em fins do século XIX, portando um volume significativo de joias, em roupa de beca. O antiquário Itamar Musse, de Salvador, detinha a posse da maior parte do conjunto de joias retratado.

Florinda tinha as características das muitas das mulheres que eu pesquisei: além das joias, eram proprietárias de prédios urbanos e de escravizadas, quase sempre mulheres. Era assim que muitas conseguiram ficar ricas: como comerciantes urbanas, vendendo em particular alimentos, mas também amuletos, aviamentos para costura etc.

A origem do nome e os significados sociais

Homens e mulheres transitam pelos arredores do Campo de Santana, atual Praça da República, no Rio de Janeiro. Coleção Gráfica da Academia de Belas Artes de Viena

O termo escolhido para batizar a série tem também sua história. “Crioulo” e “crioula” foram os termos usados durante a vigência da escravidão para diferenciar pessoas nascidas no Brasil, filhos ou filhas de mães escravizadas que nasceram na África, e aqui eram chamadas “pretas”.

Ainda no século XIX, mas principalmente a partir do século XX, “crioulo” e “crioula” passaram a abarcar negros e negras de qualquer origem, tornando-se uma expressão depreciativa. “Preto” e “preta” também tiveram seus significados utilizados de forma pejorativa, enquanto que “negro” e “negra” foram os termos escolhidos pelos movimentos sociais para identificar positivamente pessoas com ancestrais africanos.

Só que, historicamente, “negro” e “negra” significavam escravizado e escravizada, na concepção original do período da escravidão. Tanto que havia os termos “negros da terra”, ou “negros brazis”, para se referir a indígenas escravizados.

“Negro” e “negra”, em geral, designavam uma condição social, e não uma origem ou uma cor. Era a indicação de que a pessoa estava na condição escrava. Os movimentos sociais passaram há relativamente pouco tempo a adotar os termos “preto” e “preta” como forma positiva para designar afrodescendentes.

Por conta dessa polissemia, ao criarmos a série Crioula, apostamos em uma mudança de significado para esse termo, porque ele tem um sentido bem mais amplo. Etimologicamente, “crioula”, ainda que sujeito a discussões, remonta ao verbo latino “creare” (criar). É por isso que ele traz como acepções primárias aquilo ou aquele “que não vem de fora”, ou “que é nativo do local de quem fala ou escreve”.

Ao enfatizar a origem, o lugar de criação, “crioula” expressa o que buscamos: reunir o conhecimento produzido sobre a nossa história. Não se deve esquecer que esse mesmo termo foi utilizado para se referir aos filhos de espanhóis nascidos na América durante o período colonial, os “criollos”, sem relação alguma com a escravidão.

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